Por Iolanda Lima
A série de animação “Samurai dos Olhos Azuis” foi lançada no final de 2023 e conta com oito episódios de em média 40 minutos. Criada por Michael Green e Amber Noizumi e produzida por Jane Wu, é uma parceria do estúdio francês Blue Spirit com a Netflix. Ao retratar a história de Mizu, um espadachim, no Japão feudal, a história percorre por assuntos atuais como misoginia, dominação econômica e imperialismo europeu. Com uma boa recepção do público, a animação foi elogiada pela qualidade e originalidade da história. A continuação da resenha conta com spoilers.
Com o clássico “jornada do herói”, a série se desenrola pela ambição de Mizu em vingar a morte de sua mãe. Considerada uma aberração por conta dos seus olhos azuis, a espadachim é fruto da miscigenação de um homem branco com uma mulher japonesa. Ainda criança foi descoberta e logo após sua mãe ser assassinada, Mizu começa a se passar por um menino e vai morar com Seki, um velho ferreiro cego. A sede por vingança começa logo cedo, quando a menina inicia seus treinamentos com a espada sozinha, observando os clientes do ferreiro, que era conhecido por ser um grande criador de espadas. Ao atingir a maioridade, Mizu começa sua jornada para matar os quatro homens brancos que estavam no Japão durante seu nascimento. Assim conhece Taigen, Akemi e Ringo, personagens importantes para o desenvolvimento da história.
A história de Mizu
A narrativa é bem contada, com nuances e aprofundamentos encaixados em si. Ao acompanhar Mizu, que logo no final do primeiro episódio se revela como uma mulher, é interessante notar a humanização do herói. Ela, por muitas vezes, quase morre em seus combates e depende de Ringo, seu ajudante, para salvá-la. Depois de assistir muitos filmes de heróis invencíveis e lutas incríveis onde sempre existe uma carta da manga do lado “bom”, aqui temos uma heroína falha, com perdas e fracassos. Seu ego inflado no começo da narrativa torna a personagem uma persona fria e calculista, que não quer a ajuda de ninguém. Aí entra Ringo, um cozinheiro que não tem as duas mãos e não parece se importar sobre como Mizu é. O ajudante tem um grande desempenho na história, pois ele segue um caminho contrário ao da samurai. Enquanto ao longo da história Mizu acaba se tornando uma pessoa mais empática e afetiva, Ringo aprende a se tornar violento e se defender.
Com uma esrutura não linear, a animação percorre pelo passado e o presente, até mesmo sobre futuros possíveis. A história dá a chance da exploração de outras realidades daquela época, como o cenário das prostitutas de bordéis; a maneira pela qual esse universo é contado foge da simplicidade e dá espaço para essa situação. Com cenas sexuais explícitas, a série tem o cuidado em não sexualizar nenhuma personagem feminina e nos revela que o sexo era usada como ferramenta de poder feminino, já que era apenas um dos momentos em que as mulheres tinham certo poder naquela época.
O feminino
Toda a cultura e costumes são bem exemplificados, em certo ponto o telespectador agradece que Mizu se passe por um homem, dado que no penúltimo capítulo é mostrada como seria a vida dela caso assumisse o papel como uma mulher. Ela se casaria, seria feliz por um tempo, mas após demonstrar o mínimo de força seu próprio marido a denunciaria e Mizu voltaria a lutar para se salvar. No final a narrativa nos conta através do futuro possível que era destino dela se tornar uma samurai, o que se torna uma força de expectativa para o final da série.
A questão do gênero é muito bem trabalhada no filme, ao mostrar diversos cenários, como a das prostitutas já mencionadas, mas também das filhas de grandes chefes de exército, que eram vendidas para casamentos arranjados. O papel de esposa/mulher da casa é explorado minuciosamente. Akemi iria casar por amor com Taigen, um espadachim filho de pescador, mas após ser derrotado por Mizu, perde seu prestígio e sua noiva. Akemi por enfim é prometida a casamento e foge, se tornando uma prostituta.
O gênero de Mizu é um assunto recorrente, ao esconder sua identidade, ela teve que passar por situações sozinha, como a menarca e o enfaixamento dos seios, que a gera uma dor constante durante toda a série, como algo a todo momento a relembrando do seu verdadeiro eu.
O design de Mizu, com os óculos laranjas para esconder os olhos, o chapéu de palha e a espada montam uma silhueta autêntica no meio de outros personagens da série. No entanto, falta uma maior aparição de Mizu como mulher, uma exploração sobre sua feminilidade na realidade da narrativa da série. Seria mais interessante o aproveitamento da perspectiva emocional de ser uma mulher e ter que se passar por um homem.
Tanto Akemi quanto Mizu são personagens femininas fortes, que faltavam ser representadas em animações. Num período em que nem se imaginava o debate sobre misoginia e patriarcado, temos duas figuras que confrontam as nuances e situações de escala estrutural.
Da espada ao traço
Em questão técnica, apesar de se referenciar nos clássicos animes e mangás, a animação acaba tendo um estilo característico, que explora as sombras e cenas escuras e nos leva à beleza de paisagens naturais e rurais exorbitantes. As cenas de luta não inovam, mas mantêm uma qualidade realística absurda, já que foram feitas a partir de lutas reais com espadachins, com referência ao teatro de fantoches japoneses e técnicas de animação novas misturadas com o 2D tradicional.
Uma das escolhas magníficas que deve ser mencionada é a produção da cena onde Mizu tem o contato com alucinógenos e acaba tendo uma experiência imersiva com o próprio monstro azul, que a sociedade a convencia que era. A cena acaba trazendo um ar lúdico e mágico para a narrativa, demonstrando como essa substância age em um subconsciente atormentado.
As cores fazem juz à época feudalista, mas com um toque vibrante de cenas quentes, utilizando o vermelho e rosa quando se mostra os bordéis. As maquiagens, penteados e kimonos são muito bem desenhados e traçados, com uma fluidez que se equipara a grandes animações como “Castelo Animado” (2004) do Studio Ghibli. É notável que os animadores evitaram usar azul, além da natureza, céu, para representar os incomuns olhos azuis de Mizu. Visto isso, ela acaba tendo uma paleta de cores frias, fugindo de sua própria pele, com um subtom vermelho e a estética feminina da época. Sem citar o vermelho específico usado para representar o sangue, que serve como uma tinta, manchando qualquer inocência ou força demonstrada na série.
Ocidente e Oriente
Com uma ordem do xogum – chefe de Estado – o Japão se fecha ao ocidente durante o século 17, contudo quatro homens europeus se abrigam no país para fechar negociações de armas e pólvora. A série explora essa passagem da espada para a arma, e como o poder de fogo era uma novidade aterrorizante para a sociedade japonesa. Durante a narrativa, Mizu consegue confrontar apenas um dos homens brancos, Abijah Fowler é representado como um homem forte, também espadachim, mas com a ganância de derrubar o xogum e se tornar o chefe de estado do Japão, assim miscigenar e destruir toda a cultura preservada.
A forma como é montado o jogo de poderes políticos é muito intrigante. Enquanto Heiji Shindo, um burguês que abriga o europeu, teme o estrangeiro mas ao mesmo tempo cuida de sua estadia/prisão no país, Abijah vê todos os japoneses como formas de vida dispensáveis. Não hesita em nenhum momento em matar qualquer nipônico que aparece em sua frente e sente um ódio imenso por Mizu, a partir do momento que ela vai vencendo seu exército.
A série animada deve ganhar uma nova temporada depois do fim intrigante, já confirmada pela Netflix mas sem uma data prevista. Existem ainda muitos assuntos para se comentar, sobre como minuciosamente a produção montou cada detalhe. “Samurai dos Olhos Azuis” promete uma jornada merecedora de no mínimo três temporadas.