O que torna um filme majestoso? É igualmente complicado e simples demais dar um significado para a palavra quando falamos sobre cinema. Inclusive, parece até óbvio. Quando pensamos na temporada de 2024 do Oscar, podemos pensar em uma obra majestosa como aquela que carrega nomes pesados no elenco, na direção, ou que são profundamente agradáveis aos olhos, ouvidos e ao coração.
Porém, quem carrega o título é um longa com atores desconhecidos, profundamente desagradável aos olhos e com uma história que se parece mais com um daqueles pesadelos que temos depois de um dia difícil. Esta crítica contém spoilers sobre o filme Sociedade da Neve e conta detalhes sobre o acidente dos Andes, em 1972.
Quando Sociedade da Neve começa, não encanta muito. Um filme desses, porém, não precisa encantar. Falamos aqui de uma narrativa que reconta a morte de dezenas de pessoas e a luta pela sobrevivência de mais algumas delas. Para entender do que se trata o filme, tratemos antes do motivo para sua existência: o acidente aéreo ocorrido em 1972, na Cordilheira dos Andes.
Em 13 de outubro de 1972, 45 pessoas estavam a bordo de um avião que colidiria com a Cordilheira dos Andes, em um dos acidentes aéreos mais marcantes da história. Dessas 45 pessoas, somente 16 foram resgatadas com vida. A sobrevivência dessas pessoas em meio ao frio congelante, aos ferimentos causados pelo acidente e à fome foram tratados por anos como um milagre. Por anos, também, o foco da história esteve no fato de que os sobreviventes praticaram canibalismo para sobreviver, comendo os restos mortais de amigos e familiares que morreram na queda, na colisão ou posteriormente, pelo frio ou por ferimentos.
Sociedade da Neve tenta contar a história dos vivos e dos mortos, respeitando suas memórias e dando explicações para o dito “milagre”. Acompanhamos, portanto, a história de jovens tentando sobreviver em meio a condições inexplicáveis e inimagináveis. Quando o filme começa, há o receio de encontrar mais uma narrativa sobre a prática condenável do canibalismo – em uma espécie de retrato baseado no terror e no desconhecido. O que encontramos, porém, é um conto sobre amizade, braveza e perseverança.
Percebi, enquanto escrevia esta crítica, que todos os meus comentários negativos tinham alguma explicação que, no final, tornava esses comentários obsoletos. “O filme é parado, se arrasta por muito tempo!” Bom, imagino que passar 72 dias passando fome e frio à beira da morte não seja exatamente o auge da ação. “Não acredito que o narrador morre!” Se o objetivo do filme é dar voz aos mortos, por que não poderia fazer justamente isso, de forma bem literal?
É fácil elencar os pontos fortes do filme – e alguns deles nem estão na camada mais visível. O elenco é encantador, completamente conectado e é notável o trabalho duro que tiveram para trazer a história à vida. O treinamento físico para escalar montanhas reais em busca de resgate, o emagrecimento intenso para simular a fome que os verdadeiros sobreviventes passaram e a amizade real que formaram enquanto gravavam o filme indicam que, se o Oscar pudesse premiar um elenco, teríamos um vencedor.
O diretor também é exemplar em seu trabalho. O longa foi filmado na Serra Nevada espanhola, no Uruguai e no próprio local do acidente, nas Cordilheiras dos Andes. Durante os mais de 100 dias de filmagem, Juan Antonio Bayona não saiu do lado de sua equipe, e filmou suas cenas com a realidade necessária para que fossem credíveis. Quando um personagem voava para fora do avião, ele realmente estava voando para fora do avião. Quando os personagens são afogados pela neve, eles realmente estavam sendo afogados, e precisaram lutar para encontrar uma saída. Bayona é cuidadoso, exigente e apaixonado – e chega a ser criminoso seu nome não estar entre os indicados.
Sociedade da Neve é cuidadoso em retirar da narrativa aquela ideia passada de que os sobreviventes eram grandes heróis que tiveram de ser perdoados pela Igreja Católica pelo horroroso ato de canibalismo. Na realidade, aqueles eram jovens que não mereciam ter passado por tudo o que passaram, e retornaram às suas famílias não por heroísmo ou por milagre, mas por um senso profundo de comunidade e, convenhamos, muita sorte. Focar nas amizades construídas é uma escolha muito certeira. Enquanto assistimos os rostos de nossos personagens ficando murchos e velhos, podemos encontrar em suas faces uma profunda admiração uns pelos outros.
O que torna um filme majestoso, então? Um elenco sem nomes gigantescos, mas que aprende a formar amizades com colegas de trabalho e que emagrece dezenas de quilos para viver seus personagens. Uma narrativa construída ao redor de outra que já estava datada, dando nomes e vidas aos esquecidos. Um filme que tem toda a oportunidade de falar sobre canibalismo por duas horas e meia, mas que escolhe mostrar o ato por segundos, de maneira delicada e sensível. Um milagre transformado em atos minuciosamente explicados e justificados.
O filme de Bayona traz para a luz do sol os nomes de José Pedro Algorta, Roberto Canessa, Alfredo Delgado, Daniel Fernández Strauch, Roberto François, Roy Harley, José Luis Inciarte, Álvaro Mangino, Javier Methol, Carlos Páez, Fernando Parrado, Ramón Sabella, Eduardo Strauch, Adolfo Strauch, Antonio Vizitin e Gustavo Zerbino. Os nomes de todos aqueles que tiveram suas vidas ceifadas pelo acidente não só são lembrados como colocados em tela toda vez que a morte os encontra. É praticamente impossível ignorar o quanto o título do longa demonstra exatamente o seu objetivo. O público observa enquanto jovens se conectam, se ajudam, passam pelo luto juntos e começam a agir como uma pequena sociedade, presa na mais injusta das situações. Confesso que não costumo ser pessimista, mas é uma pena que Sociedade da Neve perca espaço para filmes tão pequenos em conteúdo e em essência. É um daqueles longas que fica na cabeça do público, mas não da Academia.