Em entrevista ao “The Guardian”, o diretor David Fincher define seu novo filme “O Assassino” (2023), baseado na HQ francesa homônima de Matz e Luc Jacomon, como uma bem-vinda manifestação de seu eu de 12 anos. Cria rebelde da era Ronald Reagan (1981-1988) e da ressaca niilista na década de 1990, é perceptível o prazer irrestrito do cineasta ao unir seu deboche social ao perfeccionismo de artesão apaixonado. Seja no projeto como um todo, seja no modus operandi do protagonista.
Contudo, como encarar esse ofício e modus quando as implicações dele envolvem a robotização humana e uma cumplicidade criminosa em seus abusos sistêmicos? Quão isento pode ser alguém em um cenário que se beneficia da isenção e da ignorância premeditada? A realização pessoal e profissional nesse contexto é uma fuga, vitória ou um ato de complacência?
As questões formam a espinha dorsal do charme que sustenta “O Assassino” para além de um mero exercício de gênero nos moldes de “Le Samourai” (1967) de Jean-Pierre de Melville. A trama acompanha o assassino de vários nomes -e pouca identidade- (Michael Fassbender) em uma jornada de vingança contra aqueles que o puniram por um erro em seu último serviço.
O longa promove a reunião de Fincher com o roteirista Andrew Kevin Walker quase 30 anos após o sucesso de “Se7en: Os Sete Crimes Capitais” (1995). O clima de volta às origens remete diretamente à veia sulfúrica de ambos em “Clube da Luta” (1999)- Walker não é creditado como roteirista, mas forneceu revisões pontuais ao texto. A veia niilista do realizador nunca esteve tão saltada e ríspida para apontar as mazelas promovidas por grandes corporações em suas condutas que permitem crimes, abusos e violações; seja por negligência ou prevaricação; e perpetuada por indivíduos que se julgam acima da realidade.
O assassino sem nome surge como uma união de Tyler Durden (Norton/Pitt), Anton Chigurg (Javier Bardem) (“Onde os Fracos Não Tem Vez” (2008) e Travis Bickel – de “Taxi Driver” (1976)- instrumentalizada pelas tramoias e desmandos das megacorporações, big techs e bilionários alienados. Não há tecnologia, plataforma ou dispositivo que não facilite o trabalho indigno. O protagonista sabe de tudo e mesmo soando ressentido de algumas coisas, opta por se abster de responsabilidades. Pois, o leque de possibilidades do cyber-Armagedom não apenas privilegia suas habilidades sórdidas- o que o torna um prestador de serviço caro e estimado- mas possibilitam a plena concretização de seus fetiches e caprichos de psicopata funcional… Ao menos até ele deixar de fazer sua parte nesse trato simbólico com a realidade.
Seguindo uma dinâmica de filmes slasher, Fincher nos coloca na posição temerosa de testemunha amordaçada para acompanhar não somente as ações frias e sanguinárias, mas também a psique de um monstro pior que Jason Vorhees contra seus alvos. O efeito disso depende da abertura do público, mas não há como negar que existe um fascínio mórbido nessa jornada prosaica em trajetória, mas rica nas reflexões que desperta. Até onde estamos longe de ficar como o personagem? Em que ponto deixamos o papel de vítima para atuar como perpetuadores nesse sistema? Seria o assassino alguém pior ou melhor que nós por se deixar levar e prosperar nessa realidade? A empatia em um sistema corrupto é uma fraqueza ou vantagem?
O longa ganha muito quando o assimilamos menos como um exercício de gênero, do que como um estudo de personagem determinado a nos contaminar com a atmosfera sufocante de sua visão de mundo. Tudo é um instrumento nas mãos de Fincher e sua mise-em-scéne, até a premissa batida. Se por lado é demandante do estômago da audiência acompanhar a conduta desse predador, existe um senso de humor diabólico e quase satírico em seu sarcasmo funesto, quando notamos que esta, na verdade, é uma história de superação pessoal e de consciência de classe contemporânea. Assim como “Clube da Luta” é o mais próximo que Fincher já fez de uma comédia romântica, “O Assassino” entra na mesma linha quando vemos que, ainda que de forma grotesca, é uma história de um homem percebendo que é mais que o trabalho que lhe explora.
Um senso agridoce que só é alcançado devido ao talento de Fassbender em promover um contraste nítido, mas sutil, entre a expressão crua de seus olhos e a serenidade do resto do corpo. As raras verbalizações são elevadas pelas micro expressões que troca com interlocutores que, por serem raros pontos de humanidade- ainda que não muito melhores que o matador – fazem cada diálogo ser memorável. O intérprete acrescenta toda uma camada de interesse ao nos permitir acompanhar a desvinculação gradual de sua postura de rebelde do além da realidade que o usa de idiota útil – algo sublinhado nas escolhas musicais de hits da banda “The Smiths”, ícones da contracultura da década 1980 e cujas manifestações de certos integrantes atualmente depõem contra suas letras.
O final é curioso pela forma que é montado ao favorecer a resolução protocolar para a situação insustentável do protagonista. O que soa anticlimático por proceder o verdadeiro clímax da história em uma cena afinadíssima de interação entre o assassino e sua rival interpretada por Tilda Swinton. O gosto final soa anêmico e anticlimático, principalmente quando lembramos de finais marcantes de outras obras do realizador como o próprio “Se7en”, “Clube da Luta” e “Garota Exemplar” (2014).
Ainda assim existe toda uma ironia, e justiça poética, de oferecer uma espécie de redenção ao monstro mas, no fundo, lhe delegar a um estado de vigilância e ansiedade perenes enquanto a fatalidade não chega a sua porta. Pela primeira vez, deixamos de ser a testemunha impotente dos crimes para tomar a do predador em forma da morte nos moldes da conduta do próprio assassino em relação aos pares. Curiosamente, uma sensação tão baixa e egoísta, que apenas o próprio protagonista seria capaz de sentir. Ou será que…
Enfim, Fincher é Fincher até mesmo quando tenta ser “good vibes”.