Por Yuri A.F. Marcinik
Como as ondas do antissemitismo e do fascismo possuem um caráter sazonal na história recente, é natural – e necessário – que a produção cultural sobre essas temáticas siga em voga. Mas quase um século e várias obras clássicas depois, é difícil criar algo que não soe, no mínimo, derivativo.
Focado no contexto da família Ross durante o tempo em que o patriarca, Rudolph (Christian Friedel), dirigiu o campo de extermínio de Awschwitz durante a Segunda Guerra Mundial (1938-1945), o cineasta Jonathan Glazer atinge um feito notável com Zona de Interesse (2023): Mostrar que ainda é possível retratar o holocausto sob novas – e aterradoras – perspectivas.
Adepto do experimentalismo de longa data, vide seu longa anterior Sob a Pele (2013), Glazer alinha discurso e estética para criar uma obra que não suaviza a crueldade dos nazistas, nem relega suas vítimas ao lugar-comum de buchas de espetáculo mórbido.
Usando uma perspectiva afastada, o longa-metragem mescla dois filmes em um. O primeiro é sobre a rotina da família Ross, a gestão doméstica da matriarca Hedwig (Sandra Huller), os afazeres dos filhos na juventude hitlerista e os altos e baixos de Rudoplh na hierarquia do partido nazista. A olho nu, um núcleo familiar que poderia facilmente compor as telas de Norman Rockwell – pintor célebre por retratações do “american dream” e suas famílias burguesas “perfeitas” dos anos de 1950.
Já o segundo, o verdadeiro filme, ocorre camuflado e nas entrelinhas que retratam o horror abafado das atrocidades do campo infame ao lado dessa residência, o que confere à prosperidade dos Ross um gosto nauseante. Todos seguem a máxima de abafar como podem qualquer indício do que ocorre para além do muro que separa a casa do campo. O que fica pior à medida que a trama progride e viemos a saber do roubo dos pertences dos prisioneiros e a imposição de ameaças veladas aos funcionários.
Ou seja, cada vitória de Rudolph em seus objetivos soa como uma derrota dantesca aos prisioneiros ao lado e ao público. Pois, além de acompanhar impotentes a orgia de futilidades dos Ross, somos bombardeados aqui e acolá pelas insinuações visuais e, principalmente, sonoras da sinfonia de caos e terror de Awschwitz.
Essa perspectiva de mosca amordaçada é valiosa por, a cada revisita, oferecer novos horizontes até então escondidos na periferia psicológica de nossa ignorância. Por meio de uma discussão áspera sobre indiferença e normalização oportuna da barbárie, Glazer e cia suscitam um dos despertares de consciência mais violentos dos últimos anos ao nos confrontarem com o horror moral paquidérmico varrido para debaixo do tapete de seda da realização pessoal em contextos austeros.
Um efeito poderoso que regurgita involuntariamente de dentro para fora de nosso âmago ao ilustrar de forma singular e contundente o tão recorrente conceito de banalidade do mal – criado pela filósofa judaico-germânica Hanna Harendt. Uma conduta disciplinada que resiste às tentações de exibicionismo academicista ou pedantismo artístico para germinar organicamente na dramaturgia da obra.
Esse choque reverbera até mesmo nas escolhas pouco usuais da direção em complementos que evitam a exploração per se da tragédia. Por exemplo, com o uso de câmeras de sensor infravermelho nos seguimentos da menina que fomenta a insurreição no campo, o filme cria uma ambiguidade formidável na dinâmica opressor-oprimido.
Por um lado, a decisão confere um aspecto fantasmagórico à personagem – o que traduz sua ameaça na perspectiva dos alemães – e por outro, ganha um status de um anjo níveo indefinido entre as trevas de seu contexto acessível a todos de sua causa. Uma dicotomia captada com precisão pela música a base de lamúrias e gritos distorcidos digitalmente na trilha sonora de Mika Levi.
Essa interseção entre o drama histórico e o terror psicológico se torna o grande trunfo da obra, já que o uso deste padrão de violência fustiga a sensibilidade do público em um primeiro momento, mas se volta contra os perpetuadores ao final. Com uma elipse temporal atrelada a um mal-estar sanguíneo de Rudolph, o filme orquestra uma reparação histórica ao salientar a pequenez das motivações deste – e do nazismo-, ao sobrepô-lo à herança conspurcante cravada na história da humanidade.
Todavia, o impacto do filme é proibitivo já que depende da boa vontade – e capacidade – do espectador de imergir em sua proposta. A mise-en-scene impessoal, composta de planos longos a mercê de um roteiro repetitivo no desenrolar das cenas criam um cenário monótono na superfície fácil de ser enfadonho aos menos atentos.
Ainda assim, é riquíssimo analisar o contraste entre abordagens distintas para as mesmas discussões, como é o caso da de Glazer com a de Christopher Nolan em Oppenheimer (2023) na temporada atual de premiações. Ambos partem dos mesmos pontos: Figuras históricas que assombram o nosso presente com legados traumáticos gerados em processos de alienação, egoísmo e barbárie.
Se Nolan prima pela construção subjetiva para intermediar o acesso do público à complexidade de seu protagonista, Glazer usa de toda a distância e frieza disponíveis para sublinhar a natureza condescendente, vil e oportunista dos seus. São duas linguagens opostas que confrontam o espectador com a mesma questão incômoda: O que faríamos se soubéssemos das consequências mórbidas e irreversíveis que nossa realização pessoal pode acarretar?
Se removermos a película de falso moralismo e isenção automáticos que o desconcerto que a questão suscita, veremos que a resposta para o quão longe iríamos por nossos sonhos e objetivos é muito mais sombria e deprimente do que estamos dispostos a admitir.
Ao final, as causas, consequências e motivações da conivência criminosa dos Ross, endossada pela promessa de realização pessoal, são pavorosamente mais acessíveis a qualquer um do que o maniqueísmo usual na retratação do nazismo costuma transparecer.