Por Yuri A.F. Marcinik
Quando Brady Corbet anunciou que seu segundo longa-metragem honraria a experiência de seus ancestrais que emigraram após Segunda Guerra Mundial (1938-1945) aos Estados Unidos (EUA), poucos esconderam o ceticismo ao lembrar dos concorrentes de peso, como O Poderoso Chefão: Parte II (1974), com o mesmo enredo. Felizmente, Corbet é infinitamente melhor em construir narrativas visuais do que em se manifestar em entrevistas.
Com a mesma empatia severa que empregou em Vox Lux (2018) para entender o caos oculto sob o véu da futilidade do universo das divas da música pop, Corbet agora cavoca os escombros e traumas que a versão oficial da “acolhida” dos EUA aos refugiados não mostra. Uma viagem fascinante pelo poder da arquitetura de sobreviver como a manifestação mais duradoura de um zeitgeist e de, simultaneamente, ser malsinada a se emudecer sobre os abusos enraizados nas origens das construções.
Em uma sucessão de falsas vitórias, humilhações e vícios, o refugiado Austro-Hungaro judeu Lazlo Toth (Adrien Brody) vê uma chance de trazer a esposa Erzsébet Tóth (Felicity Jones) da Europa e ressuscitar a carreira de arquiteto. Um sonho subordinado ao magnata Harrison Van Burren (Guy Pearce) e seu projeto de centro comunitário megalomaníaco.
Econômico nos planos para pautar o ritmo das cenas na movimentação dos atores, o longa ampara sua potência narrativa em contextualizações não diegéticas – como filmagens publicitárias, telejornais e excertos radiofônicos da época- e na separação tonal entre os momentos tensos dos voltados a um alívio de drama.
Os tensos são filmados em tripé com movimentação mínima- o que sublinha vulnerabilidade em momentos chocantes – e com ângulos de câmera oblíquos para emular o efeito desorientador do uso de heroína. Já os intervalos pacíficos são edificados pela leveza imprimida no manejo não coreografado da câmera. Impressão que acentua a percepção etérea do tempo, embriagada em prestígio, do protagonista.
Tratam-se de estratégias reverberadas na contraparte sonora, já que a trilha de Daniel Blumberg cria um intermédio entre o subconsciente de Toth e o público. Algo perceptível na forma como os arranjos do leit motif do filme entoam “limpos” em momentos de vitória e ficam mais “poluídos” por outros sons em momentos de incerteza. Principalmente quando o caos do jazz prevalece na medida que a fragilidade do protagonista fica mais evidente.
Nos moldes de Martin Scorsese as canções escolhidas também reforçam o lirismo da atmosfera de cada cena – vale o destaque para o uso de “You are my destiny” de Mina Mazzini que inunda sua sequência de franco júbilo no início e a conspurca feito acetona no final.
O resultado é um dominó de tensão transpirada, através de interações que camuflam latência sexual e inveja reprimidas, sob a carapuça de falsa cordialidade e subordinação profissional.
Sexo, arte e a vazão de neuras
Um mérito também é o roteiro de Corbet e Mona Fastvold, que articula as tormentas dos Toths, ramificando-as a partir de suas origens na sexualidade, cujos impulsos – e ausências – partem da libido enquanto manifestação do íntimo de cada um. Ao mesmo tempo que ilustra o vínculo de afeto e dependência emocional, inclusive de forma identitária, entre marido e mulher – constatável na impotência em oportunidades de adultério – também se estende para abranger a natureza sórdida do apreço de Van Burren por Lazlo.
Mas o sexo não é o único escape para emoções mal canalizadas. Criando edifícios que induzem à claustrofobia e a expurgam com as formas geradas pela entrada da luz, a arquitetura brutalista de Lazlo é um relato de dor oprimido entre orgulho e esperança de imortalização na crosta da eternidade.
Pode parecer uma hipérbole, mas com tantas camadas de subtexto, as quatro horas de projeção – intermissão inclusa – raramente pesam. Poderia até ser maior caso o filme mostrasse a passagem dos Toth por campos de concentração, que fica na menção verbal. Mas até essa decisão surte efeito já que estabelece o terror da aniquilação cultural dos emigrantes nos EUA como tão, ou mais, pavoroso que o extermínio promovido pelos nazistas.
Atuações
Toda a arquitetura entre texto e imagens seria desperdiçada se o fator humano não cativasse na mesma medida. E aqui Brody, Jones e Pearce atingem um zênite invejável na complexidade de nuances que agregam ao roteiro – já soberbo por si só.
O ganhador do Oscar por O Pianista (2002) é sagaz na forma como indica com elegância as prioridades, sensações e posições artísticas de Lazlo. Em especial nos ecos destas em confronto às situações que testam seu brio sem trégua. Já a intérprete de Erzsébet consegue manter a aura de bússola moral da estória sem sacrificar a complexidade da personagem e seu gravitas que orbita entre orgulho, carência e desejo.
Quase sempre associado a tipos excêntricos e vilanescos, Pearce acha em Van Burren sua grande vitrine. Não porque abandona seus afetos e trejeitos de praxe, mas por que finalmente encontra o personagem certo para mascarar ímpetos monstruosos detrás de maneirismos aristocráticos.
Um esforço que culmina em um tobogã emocional que nos leva da ojeriza a comoção; da curiosidade à contemplação. Um prato cheio para o exercício de nossa capacidade de empatia à moda do mestre David Lean. Célebre por unir grandiosidade e intimidade para fazer seus filmes se imporem em nossas reflexões dias após o primeiro contato.
E o fato de Corbet e sua equipe atingirem esse nível de excelência com uma fração do orçamento de outros filmes – mais pobres em substância e mais intrusivos no circuito de exibição – só reforça a admiração que a obra merece.