Por Yuri A.F. Marcinik
Adaptar é um caminho cheio de armadilhas: como criar não apenas uma sequência de eventos, mas também seu impacto ao migrar para outra mídia? Como equilibrar a interpretação individual com o propósito consensual de algo clássico e longevo na cultura pop? E, acima de tudo, como atualizar para as sensibilidades do presente sem soar descaracterizado? Assistam “Duna: Parte II” e descubram!
A segunda metade do livro de Frank Herbert é complexa. Em meio a vários devaneios de um Paul Atreides (Timothée Chalamet) dividido entre a vingança contra seus algozes, a adesão à profecia colonialista e as visões de múltiplas realidades, é difícil fugir do hermetismo em uma abordagem literal… Ainda bem que Villeneuve e Jon Spaihts optaram por outro caminho.
Aqui, o conflito se dá no impasse que força o protagonista a escolher entre duas decisões odiosas: seguir o caminho da profecia colonial e estender o ciclo de barbárie que a aristocracia intergaláctica perpetua em Arrakis, ou ver o povo que o acolheu — e sua amada — perecer por desvantagem tecnológica e divisão interna em torno da Lisan-Al-Gaib (o messias da “voz do exterior”).
A decisão de postergar uma reviravolta — que, na cronologia do livro, aconteceria na primeira parte — e fortalecê-la dentro de uma dinâmica que conecta Paul à razão de ser das Bene Gesserit e aos rivais, o primo Feyd-Rautha (Austin Butler) e seu tio, o Barão Vladimir Harkonnen (Stellan Skarsgård), é um acerto genial. Não apenas cria um suspense dramático mais envolvente, mas também torna mais claras as intenções anticolonialistas, antifanatismo e antipatriarcais de Herbert.
Ao mesmo tempo, salienta o tom trágico de Paul e sua danação diante não apenas de seus valores, mas também da pessoa que lhe deu um voto de confiança: a guerreira fedaykin Chani (Zendaya). Em uma ironia amarga, a situação se torna tão extrema que obriga Paul a quebrar o coração e a admiração dela para impedir que um genocídio aconteça novamente entre os Fremen.
Com uma linha narrativa mais direta, que aplica os devaneios da multirrealidade do Kwisatz Haderach de forma funcional — algo que faz sentido com a adaptação progressiva de Paul à especiaria —, Villeneuve constrói uma ambivalência deliciosa sobre o destino dos Atreides: por um lado, saboreamos sua vingança contra os assassinos de seu pai e seu clan; por outro, lamentamos seu efeito colateral que isso possa ter em toda a vida no universo.
A complexidade da situação se torna ainda mais evidente quando remontamos ao passado primal da vida no planeta. Sim, o uso da fé como forma de manipulação e sincretismo é um golpe baixo, mas — e aqui o filme nos convida a refletir — o que poderia substituir o fanatismo como esperança em condições tão hostis à sobrevivência dentro e fora do planeta?
Com essa carga de energia dicotômica, o clímax vem recheado de tensão, dividindo-nos entre o esplendor e o lamento pela estrutura injusta desse universo! Chani, a personagem que mais evolui com as mudanças do roteiro, assume o papel de bússola moral em meio à insanidade autoinduzida histórica de seus pares e ecoa nossa decepção.
Em qualquer outro contexto, sua construção soaria como uma jogada de marketing para criar uma falsa sensação de representatividade feminina. Mas aqui, o roteiro é soberbo ao desenvolvê-la não apenas como uma jovem rebelde e cheia de atitude — um tropo já cansativo —, mas como alguém que se sente contrariada pelo regimento injusto alicerçado em padrões de dominação que ninguém mais percebe. Padrões que ela sente na pele, pois foi criada sob a tutela de uma profecia que a objetifica e lhe priva de autonomia.
Assim, quando Paul precisa fazer uma “Escolha de Sofia”, é tocante perceber que, junto com a admiração de Chani pelo amado e seu ideal, morre também a esperança de que o ciclo colonial finalmente pudesse ser quebrado.
“Duna: Parte II” é uma obra densa, articulada com a maestria visual-sensorial de Villeneuve e sua equipe no auge de suas capacidades. Com uma escala maior, tudo parece feito com esforço dobrado para cumprir com as expectativas. Impossível não destacar o trabalho do cinegrafista Greig Fraser, que enriquece ainda mais as texturas e tons de sua paleta no formato IMAX, e os arranjos de Hans Zimmer, que potencializam as faixas já existentes e acrescentam novos elementos para englobar o senso de contradição na jornada dos Atreides.
Um ótimo exemplo é a forma como a mesma composição musical é usada com arranjos diferentes para ilustrar a tragédia que se abate sobre o relacionamento do protagonista e sua amada. Se, na primeira vez em que é entoada, a música expressa a paixão crescente alicerçada na admiração mútua de forma até ingênua, na segunda, o sentimento morre, dando lugar a uma condução impregnada de fatalismo pelo que morreu e pelo que está por vir.
Um filme que não só é fiel à obra original, mas talvez até a supere narrativamente, ao se organizar de forma mais clara e envolvente. Que venha Messias de Duna e a conclusão épica dessa saga, que desde já se candidata a uma das melhores da década!