Por Cultura Plural
Por Naiomi Mainardes e Victor Schinato
O quadro de espetáculos do Festival Nacional de Teatro passou por uma mudança de tom no último domingo (5). Com ênfase nos monólogos e reencenações, o público foi levado a duas narrativas completamente diferentes entre si, mas com o mesmo teor de performatividade.
Com o maior público do festival até o momento, a peça “A Luta”, estrelada pelo ator Amaury Lorenzo, da novela “Terra e Paixão”, reencena o período da Guerra de Canudos. Baseado na terceira parte do livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, o espetáculo acompanha homens e mulheres comandados por Antônio Conselheiro durante o conflito sangrento ocorrido no interior da Bahia. “Falam que o Brasil é de criação pacífica, mas eu discordo disso. Tem muito sangue na história do nosso país”, afirma Amaury.
Na trama, com pano de fundo o conflito bélico, são postas em pauta questões acerca de poderio militar, religiosidade e fé cega, assim como a discussão acerca da monarquia e república. Tal narrativa, apresentada desde setembro de 2022, angariou uma série de indicações e prêmios em festivais. Mais recentemente, foi premiada como melhor ator, pela performance de Amaury Lorenzo, e melhor iluminação, nas mãos do técnico Ricardo Meteoro.
A peça, marcada por forte corporalidade, quase coreografada, expressa uma forte presença de palco de Amaury e, apesar de não contar com cenário, preenche todo o palco com fumaça, luz e movimento.
“A gente conhece Shakespeare, e tá tudo bem, mas quem aqui acredita em algum dramaturgo brasileiro?”, questiona Lorenzo em debate ao final da peça. “Eu acredito que quando a gente conhece de onde a gente veio, a gente fica bem onde está”, diz o ator sobre a importância de conhecer dramaturgias brasileiras e valorizar a cultura nacional.
Intimidade é a palavra para descrever a segunda peça da noite. No espaço intimista do palco B, “Proibido Acesso” convida o espectador a uma viagem sensorial por meio da cultura não vista da vida de indivíduos LGBTQIAPN+. Ao abordar a sexualidade humana e suas diversas nuances sem nenhum pudor, ou roupas, o ator Leandro Cardoso traz luz aos momentos vividos no escuro e, por muitas vezes, proibidos.
A narrativa, em construção desde 2019, sofreu fortes impactos da pandemia. Ao tratar de encontros proibidos no escuro, o aspecto do isolamento social toma outra forma neste espetáculo experimental e sensorial. Além do monólogo de Leandro, a cenografia e técnica propostas por Hedra Rockenbach adicionam outras camadas de interpretação à peça. Com apenas um projetor e alguns adereços de cenário, uma narrativa paralela e complementar é tecida e muitas vezes dita o tom do discurso do personagem de Leandro.
Com foco em sensações imediatas e o prazer momentâneo, as poucas linhas de fala do roteiro foram escritas imediatamente após os ensaios muito físicos, em que Leandro estava intensamente consciente de cada sensação que perpassa seu corpo. Assim, o monólogo se torna uma janela para visualizar a vida de um homem gay e a relação com seu corpo e sexualidade.
A idealização, proposta por Leandro iniciou a partir de um artigo científico que estuda a vivência de homens em lugares de conotação erótica, como dark rooms e saunas. Ao longo do processo, outras camadas foram adicionadas à narrativa, como a influência da cultura pop na vida da população LGBTQIAPN+, a erotização e representação do corpo masculino ao longo da história e também a culpabilização imposta a aqueles que optam por viver sua sexualidade longe dos holofotes da aprovação social.
Devido ao aspecto extremamente corporal e sensorial da peça, a produção foi posta em pausa durante a pandemia. “Nós não víamos sentido em falar sobre isso digitalmente, então preferimos esperar por um momento em que podíamos apresentar de maneira presencial, para um público pequeno com cerca de 20 pessoas”, afirma o ator.
A Karma Coletivo, grupo que produz a peça, é formada por Leandro e seu círculo próximo, como é o caso de seu esposo, que é diretor do espetáculo. Vindos de Itajaí, sendo essa peça um produto de lei de incentivo fiscal à cultura, os dois contam extrema preocupação em se apresentar em sua terra natal, devido ao conservadorismo do estado. “Qualquer pessoa que a gente não conhecia que entrava no teatro, a gente já desconfiava, tínhamos medo de ser um doido que pudesse fazer o pior”, afirma o casal.
A programação da 51° edição do Festival Nacional de Teatro segue até o dia 9 em diversos palcos e escolas pela cidade. Hoje, serão apresentadas a peça infantil “CaÊ”, também da Karma Coletivo, “Coração em Chagas”, “Conselho de Classe”, “O Que o Mordomo Viu” e “O Estupendo Circo di SóLadies”. Os ingressos podem ser retirados no Cine-Teatro Ópera antes dos espetáculos.