Por Cultura Plural
Figura 2 - "Fotografia do Jasy jatere, típico da mitologia da cultura Guarani do Paraguai."
Por Fabio Aníbal Goiris
O jornal Folha de São Paulo (29 de novembro de 2025) esclarece uma antiga questão sobre a mitologia da América do Sul. O diário brasileiro afirma que o mito do ‘Saci-pererê’ não é originário de uma única cultura. Ao contrário, provêm de uma mistura de diversos elementos culturais e de mitologias de povos indígenas, africanos e europeus. Pode-se dizer, no entanto, que sua origem (essencial e mais remota) vem diretamente da cultura dos Guaranis, um povo indígena que habitava principalmente a região do atual Paraguai. O próprio nome ‘Jasy jatere’ (‘pedaço de lua’ em idioma guarani) tem origem nessa antiga cultura.
O Jasy jatere (ou Yasy yatere, na escrita mais antiga) é, pois, uma lenda mitológica das nações Guarani primitivas, representada por uma espécie de duende (ou espírito) que emerge nas selvas do ‘Paraguai profundo’. Este duende da floresta é um menino muito jovem, loiro e que aparece no bosque após o meio-dia. A sua presença é geralmente aterrorizante, pois seu assobio é ubíquo, quase onipresente; sua voz perto do inaudível e afetada por um ceceio na pronúncia. Mas, o que assusta mesmo é sua metamorfose, já que pode se transformar, em um segundo, em pássaros ou plantas da região. Por ser loiro, ele também é chamado de ‘Cuarahy yara’ ou “Dono do sol” (ver figura 1 e 2). Os nativos costumam lhe deixar presentes para acalmá-lo em seus momentos de ira, como mel (‘eíra’), cana-de-açúcar (‘guari’) e tabaco (‘pety’).
Seu papel benigno, pacificador e protetor consiste em cuidar da natureza, dos animais e das plantas. O Jasy jatere fica furioso e agressivo ao perceber as matanças de animais indefesos por caçadores e os serrotes derrubando árvores antigas. A única defesa contra o duende enfurecido é usar no peito um crucifixo feito de “pindó caraí” (uma folha longa e fina, abençoada na igreja). Nas fotografias abaixo, observa-se duas imagens do Jasy jatere da mitologia Guarani, do Paraguai.

Na mitologia brasileira, o Saci-Pererê, que teria sua genealogia no antigo mito do Jasy jatere (dos guaranis primitivos), surge como um duende com características antropomórficas completamente diferentes. Primeiramente, o Saci-Pererê, do Brasil, tem pele negra (“um menino negro”, como dizem os autores). Este fato seria justificável dada a composição racial negra do Brasil (cuja linhagem inicial está na África). Além disso, o Saci-pererê tem apenas uma perna. Essa característica (creditada à mitologia africana) vem da capoeira. Uma dança ou arte marcial amplamente praticada por africanos escravizados, que inclui saltos, golpes com as pernas e manobras aéreas. Acredita-se que o Saci-pererê perdeu uma perna em uma luta de capoeira. Sem esquecer que o cachimbo do Saci (para fumar tabaco) também é um legado da mitologia africana. Ademais, o capuz vermelho do Saci, uma de suas fontes de poder, teria origem na mitologia popular portuguesa (Figura 3). O Saci-pererê é, pois, um duende que defende a floresta e os animais.

O Saci-pererê é uma das figuras mais famosas e importantes do folclore brasileiro. No Brasil, o dia 31 de outubro foi instituído oficialmente como o Dia do Saci-pererê (Projeto de Lei federal nº 2.479/2003), por se tratar de um duende que protege a floresta tropical e seus animais. No entanto, o escritor Monteiro Lobato, que popularizou o Saci-pererê em seus escritos (publicou ‘O Saci’, em 1921), certamente cometeu um erro ao retratar o mitológico duende negro quase como uma caricatura (“bagunceiro e travesso”). Deixou de ser o mito protetor, misterioso e onipresente de animais e plantas.
Emerge, pois, uma evidente diferenciação. No Paraguai o mito do Jasy jatere mantêm sua presença e sua ‘verdade’ através dos séculos. É um mito que não se ensina como parte da história ou como um elemento do folclore. O mito do Jasy jatere é entendido praticamente como uma história viva. A sua presença espectral é contada ainda hoje no dia-a-dia das pessoas. No silencio da ‘siesta’, após o meio-dia, a selva paraguaia é ainda dominada pelo respeito e reverencia devotados ao Jasy jatere (ao seu longínquo assobio e sua aterradora metamorfose). As crianças sabem que não se pode destruir a floresta, porque ali é a moradia de Jasy jatere.
O escritor indígena Olivio Jekupé, autor do livro “O Saci verdadeiro”, publicado em 2006 pela Editora Eduel (Editora da Universidade Estadual de Londrina), diz que nas parcialidades guaranis da América do Sul o mito do Jasy jatere não é classificado como folclore, justamente porque ainda faz parte da crença. Contrariamente, o mito do Saci-pererê, no Brasil, passou a ser entendido apenas como uma entidade folclórica. Assim, ao entrar na seara do folclore, o mito original do Saci-pererê pode ter sofrido os efeitos das incorporações e alterações cada vez mais comuns, inclusive por efeito do próprio capitalismo.
Nesse sentido, Monteiro Lobato teria alterado a condição do Saci-pererê original. Ou seja, teria corrompido sua condição de mito aterrorizante e misterioso (tal como continua sendo o caso do mito do Jasy jatere, da cultura guarani), para inseri-lo no contexto do famoso Sítio do Picapau Amarelo. Qualquer travessura, gracejo ou traquinagem observada no cotidiano passou a ser entendido como “coisa de Saci”. Talvez o objetivo de Lobato tenha sido adaptar ou adocicar o mito do Saci ao gosto do público infantil de um Brasil já altamente consumista. Cabe acrescentar que o ‘Sítio do Picapau Amarelo’ é uma série de 23 volumes de literatura fantástica, escrita por Monteiro Lobato (entre 1920 e 1947).
Desde outro ponto de vista, já foi explicitado que, no Brasil, o dia do Saci é festejado no dia 31 de outubro que é justamente o dia de Halloween, ou ‘dia das bruxas’, na cultura norte-americana. É possível perguntar: esta coincidência de datas é uma tentativa de, mediante a homogeneização cultural, abrasileirar o halloween? Um grupo de jornalistas e intelectuais acredita que sim. Ou seja, que uma das formas de resgatar e valorizar as raízes culturais é justamente abrasileirar o halloween. Frases jocosas foram criadas para defender essa ideia: ‘arteiro que só ele, o Saci-pererê quer dar um jeito de se apropriar das abóboras do Halloween’.
Contrariamente, outros autores como Andriolli Costa — pesquisador de folclore e criador do projeto “O Colecionador de Sacis”, considera que a cultura estrangeira, impulsionada pelo imperialismo económico e cultural e que incorpora forte influência da cultura pop (presente em filmes, séries, música e livros), acaba ofuscando as figuras do folclore brasileiro (Figura 4). Assim, o pesquisador conclui que: “Ainda hoje, há quem ridicularize as entidades do folclore, limitando-os a uma representação meramente figurativa. Essas pessoas tendem a considerar nossas tradições ‘ridículas’ e a valorizar o que vem de fora, justamente por serem elementos estrangeiros já amplamente mediatizados e, portanto, vistos sob uma ótica diferente. A proposta do Dia do Saci, então, surge como uma forma de desafiar essa visão, forçando as pessoas a relembrar e valorizar o Saci”.

Pode-se concluir que persiste uma lendária dualidade. Por um lado, o mito do Jasy jatere, da cultura guarani, não tem sido exposto ou entregue ao canto das sereias do capitalismo tardio. O menino loiro, de assobio refinado e metamorfismo assustador e misterioso, continua reinando nas selvas do Paraguai, protegendo-as. Ao mesmo tempo, o Jasy jatere não entrou no (ou não aderiu ao) espectro do mero folclore, uma vez que ainda representa uma história viva, que é contada para crianças e adultos até os dias de hoje. Depreende-se deste conceito que o folclore pode ser mais facilmente modificado pelo “meio ambiente utilitarista” do que a história viva de um mito como o Jasy jatere. Uma mitologia popular transformada em lenda viva que se ancora na tradição e ali permanece.
Por outro lado, o Saci-pererê, parente mitológico mais próximo do Jasy jatere, parece ter perdido sua aura de mito aterrador e misterioso. Isto aconteceu sob os efeitos de um capitalismo clássico e globalizante, que historicamente não aceitava que o Saci-pererê sempre foi um aliado incondicional dos escravos negros. Assim, o mito do Saci, o protetor das selvas brasileiras, virou apenas um menino travesso e trambiqueiro. Seja como for, o Saci-pererê conseguiu se transformar, no entanto, numa das figuras mais icônicas e populares do folclore brasileiro. Conhecido por ser um menino negro com uma perna só, ele usa um gorro vermelho, fuma cachimbo e não fala inglês.
* O autor é professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Graduado em Direito (CESCAGE), mestre em Ciência Política (UFRGS), realizou curso de Sociologia Política na Universidade de Londres. Publicou diversos livros.