Se há um momento que define a visão do cineasta James Gunn em sua abordagem para os personagens antes relegados ao pano de fundo do universo de quadrinhos da Marvel, é aquele compartilhado ad nauseum nas redes do primeiro longa de 2014. Peter Quill (Chris Pratt), ao ser confrontado pelo niilismo de Rocket (Bradley Cooper) e a suposta inutilidade de se salvar a galáxia, responde: “Talvez por que eu seja um dos idiotas que vive nela”.
A cena é poderosa não apenas pela simplicidade desconcertante da resposta, mas também por deixar claro como este grupo não poderia ser mais normal, disfuncional e comum frente aos deuses, super-soldados e gênios que povoam esse universo. E justamente pela simplicidade, humildade e riqueza de espírito – a beleza do ordinário, que Gunn tanto valoriza em suas obras – acabam por se tornar uns dos mais cativantes em suas dinâmicas, que qualquer um pode se identificar em seus círculos de afeto.
Quase dez anos depois de lançarem um filme que ganhou destaque e personalidade no MCU e na cultura pop ao unir elementos do space opera dos anos 60 e 70 e uma trilha eclética, James Gun e o aparato da Marvel – que viveram uma novela com direito a separação rancorosa, um escândalo e uma reconciliação funcional – finalizam a saga dos aventureiros espaciais encrenqueiros com alguns dissabores, mas com uma sensação geral ambiciosa e tocante que emoldura o compromisso do cineasta com seus valores e com o amor que tem por suas criações.
No último capítulo com o cineasta no comando, os guardiões vão atrás do passado de Rocket para poder salvá-lo após o ataque de Adam Warlock (Will Pouter) deixa-lo à beira da morte. O poderoso inimigo é um enviado do Alto Evolucionário (Chukwudi Iwuji), aquele que criou de forma monstruosa o próprio Rocket. Mas agora ele precisa do cérebro do guaxinim para tentar criar sua “civilização perfeita”.
O embarque emocional do público aqui é condicionado ao quanto ele se conecta com as cenas mais dramáticas de Rocket, já que dentro da crítica especializada há uma polarização quanto à eficiência da abordagem de Gunn nessas cenas. Alguns a consideram vigorosa em sua coragem de teor gráfico na ilustração de crueldade contra animais. Já outros não deixam de perceber que a simplicidade com que são feitas junto de diálogos bobos moldados para deixar as vítimas ainda mais dignas de pena, as faz soar sentimentalistas em uma proporção de mal gosto. Por si só essa polarização já é um convite para que o público vá ao cinema e julgue por si só se as cenas são tocantes ou apelativas.
Nessa crítica, abraçamos as duas definições, já que ambas atestam a inconsistência da direção em sua abordagem e a tendência irritante de Gunn – já vista em Esquadrão Suicida (2021) – de tentar emocionar através da verbalização redundante que enfraquece o poder das imagens, que já provém o impacto necessário. Felizmente o pedantismo da abordagem se limita a poucos flashbacks.
É importante salientar que Guadiões da Galaxia Vol. III acaba por ser um filme que soa muito melhor quando comparamos com os lançamentos mais recentes da Marvel; mas que empalidece perto de seus antecessores já que o comando geral do diretor parece sofrer um pouco com o desgaste que sua saída e retorno a Marvel causou.
Com a inclusão de outros núcleos como o de Ayesha (Elizabeth Debicki) e Adam Warlock, há um inegável senso de excesso na trama que acaba sobrecarregando a montagem. Logo, os cortes necessários para manter a duração em torno de 2h30 criam certos choques involuntários súbitos ao jutaposicionar momentos de humor caricato a cenas fortes de abuso contra animais indefesos.
O que nos traz ao aspecto contraditório das forças antagonistas. No papel, o vilão é formidável por incorporar toda a ojeriza do diretor por personalidades frívolas, sisudas e narcisistas que buscam o ideal acima do real e provocam catástrofes eugenistas aos perseguidos por essa intolerância ao que não cabe ou não atende aos seus padrões- traços claros da personalidade dos vilões Ronan (Lee Pace) e Egon (Kurt Russel) dos capítulos anteriores. Mas, na prática, é um pouco decepcionante ver esse potencial diluído pela direção que faz o ator Chukwudi Iwuji a se manter sempre caricato e afetado.
Ainda assim, mesmo com todo o potencial filosófico referente a questões como responsabilidade divina e eugenia corporativa sendo minimizado, tal faceta ainda tem um inexorável e incômodo atrativo emocional na trama. Pois quando o grupo chega ao planeta sede de nome do Alto Evolucionário, existe uma genuína sagacidade de Gunn e companhia na caracterização do planeta. Ele soa como uma mescla do imaginário nostálgico dos EUA dos anos 50 – romantizado atualmente como perfeito por ser desassociado das implicações racistas e elitistas que o cercavam – com uma nuance perturbadora a lá “A ilha de Doutor Monroe” de H.G. Wells.
Todos os habitantes soam como aberrações, ilustrações mal-acabadas da junção entre animais e humanos que jamais deveriam ter saído da mente doentia que os criou na base da dor e indiferença à vida. Ainda assim, somos instigados a nutrir certa empatia por eles não apenas pelo seu aspecto humanoide e caracterizado à nossa semelhança, mas pela vulnerabilidade de sua vida que, se não bastasse a blasfêmia antiética em que é pautada, está sujeita a aniquilação frívola devido aos caprichos grotescos de seu criador.
E verdade seja dita: ninguém na Marvel sabe conduzir melhor sequências pautadas no humor do que Gunn. Pois quando se trata de diálogos cômicos, diferente do drama, onde o cineasta costuma patinar, Gunn é excelente em construir interações cujo humor vem do que associamos ao banal do cotidiano ou como tempero caótico às cenas de ação.
E ainda que eventualmente feita de forma pobre, a construção da emoção do longa acaba por ser o seu ponto mais forte. A ambição de criar um arco com base nos traumas e tragédias da vida de Rocket – um guaxinim falante e bípede – e usar isso para complexificar todos os outros personagens, acaba por ser uma virtude louvável do script, que oferece um clímax poderoso para quem acompanha esses personagens há tanto tempo. Especialmente por encerrá-la sob a tutela de uma bela mensagem de superação da dor e redenção através do amor nutrido em uma família encontrada pela vida.
A obra pode não ser um desfecho definitivo – exceto para Gunn, que migrou para a concorrência – já que encerra o grupo como o conhecemos, mas os deixa à disposição de Kevin Feige. Mesmo com certos desgastes – como a falta de pungência da utilização da maioria das músicas pop, grande mérito identitário dos capítulos anteriores – e excessos, o senso de finalização ainda é poderoso por si próprio.
O que fica é uma alegria melancólica. Não apenas a gerada pela estória, mas a de imaginar se outro cineasta seria capaz de fazer desses personagens tão banais dentro do universo Marvel, pessoas tão carismáticas e humanas quanto Gunn o fez em seu exercício de conciliação entre interesses mercadológicos e autorais. O melhor elogio que posso fazer a esse caótico e único autor em seu adeus a esse universo.