O estilo de animação em stop-montion voltou à voga nas categorias de animação do Óscar de 2023. Aliando uma técnica artesanal, paciência e muita dedicação, a técnica sem dúvida é uma das mais românticas e históricas do cinema. O que exige que quem trabalha com ela se deixe conduzir por um sentimento de amor ao que faz para continuar no exercício digno de Sísifo de termina-la. E isso descreve apenas o processo artesanal, sem contar o emocional.
Não à toa, tal sentimento resplandece em texto e caracterização das duas principais animações desse ano, Pinóquio de Guillermo Del Toro e em Marcel The Shell with the Shoes On, ambas de 2022. Por uma ironia triste, Marcel acabou tendo um atraso de um ano em sua distribuição, o que colocou o filme e o aparato pacato de campanha da produtora A24 em desvantagem contra o fenômeno de Del Toro e sua difusão mais acessível na Netflix.
Um desafio tão opulento quanto o encarado pela conchinha Marcel e sua vovó. E vque apenas poderia ser vencido com o super-poder do protagonista: A força inabalável da integridade que demonstra através de sua visão doce e ingênua do mundo hostil que habita fora de sua realidade.
A obra de Dean Fleischer Camp e Jenny Slate acompanha os esforços do documentarista Dean (o próprio diretor do filme) para ajudar Marcel (Slate) e sua vovó Connie (Isabella Rosellini) a encontrar a sua família que foi levada em uma mala quando os habitantes da casa onde residiam brigaram e se divorciaram.
Elaborada e produzida em um intervalo de sete anos, a animação soa como uma fabulação da vida real de seus criadores. Se os temas centrais circulam pela ideia de percepção de raízes como essencial para o desenvolvimento pessoal, desde que não sufocado pelo conformismo de relações e ambientes comodamente estagnadas, não é coincidência. Durante o período, Fleischer e Slate começaram o trabalho como um casal e divorciaram-se durante o processo. Mas a parceria profissional durou até o final da edição.
Ainda que face a esse tipo de situação seja comum associar o rancor como emoção oriunda e causadora de um termino- o que ressoa frente as discussões do casal de “hospedeiros” de Marcel e cia- o filme argumenta que a mais complexa emoção é a de compreender que, por vezes, quem amamos poderia se desenvolver melhor longe de nossa alçada. Um sentimento duro de reconhecer e que dificulta ainda mais a aplicação do desapego que ele exige na realidade. Conflito este que o filme desenvolve através da relação terna e cativante entre o protagonista e vovó Connie- não por acaso também inspirada na avó de Slate.
Em uma época em que termos como “zona de conforto”, “comodismo”, e “proatividade’ ganham sentidos banais, o filme se torna especial por mostrar as complexidades envolvendo uma mudança radical de rotina. Não abandonamos um lugar amistoso apenas por denotarmos como ele nos limita. Existe todo um conflito entre o que nos faz ficar apegados a ele- dignos e compreensíveis em muitos casos- e nossa urgência de se desenvolver, que se manifesta como uma inquietação dilacerante conforme o tempo passa e nos joga para um cabo de guerra emocional onde nos puxamos, e nos machucando, nas duas extremidades.
Logo, é um deleite acompanhar a rotina de “zona de conforto” de Marcel. Vivendo sozinho e tendo de cuidar da avó, ele se desdobra em feitos notáveis para circundar sua condição de criaturinha minúscula e sem braços. O mesmo sentimento de procura por suas raízes- e desenvolvimento pessoal- que o motiva a cuidar da única pessoa que lhe restou, também é aquele que o impele a se aventurar no mundo para achar o restante de seu clã.
Fleischer e Slate criam, através da jornada melancólica e comovente de busca pela integridade partida de Marcel, uma solução que reside na ideia do desapego natural e caloroso. Os cineastas sugerem que se amamos alguém reciprocamente, devemos deixa-la ir e nos levar em sua memória. Local onde ela nos guardará com carinho e afeto, mas que não lhe furtará os sonhos e pretensões para o futuro.
Pela voz de Slate, tal trajeto complexo e maduro- para os padrões das animações maistream contemporâneas-, ganha camadas de leveza e cativancia que resultam em uma emoção potente e reconfortante ao final da obra. Em nenhum momento o filme parece estar sendo condescendente com o público ou óbvio em suas mensagens. Um feito admirável por vermos como toda condução das ideias é feita pela postura e personalidade magnéticas que a atriz e roteirista aplica em sua caracterização sonora de Marcel.
Minúscula em suas proporções e vigorosa em espírito como seu personagem título, a animação da A24 é uma conquista por si própria por usar a bagagem emocional de seus criadores de forma tão fofa e elegante para dar à luz a uma fábula poderosa sobre nossas raízes e sobre um amor que une, perdura e inspira. Mesmo quando quem costumava emaná-lo já não pode estar conosco.