Por Sérgio Gadini
Quem visita a capital húngara não pode deixar de conhecer um dos marcos em memória do massacre nazi-fascista de milhares de moradores locais assassinados na beira do Rio Danúbio. O monumento ‘Sapatos às margens do Danúbio’ (‘Cipők a Duna parton’ ou ‘Shoes on the Danube’) localiza-se há cerca de duas quadras do Parlamento da Hungria, no lado Peste da capital, que é dividida pelo Rio, na região central da Cidade.
São cerca de 60 pares de sapatos antigos (masculino, feminino e infantil) em metal que lembram as vítimas que eram obrigadas a se despir e colocar joias e dinheiro dentro dos calçados antes de ser fuziladas e jogadas ao Danúbio, geralmente na noite durante o inverno de 1944.
O responsável direto pelo assassinato coletivo de incontáveis inocentes (judeus, ciganos e demais migrantes) foi o Partido da Cruz Flechada, de inspiração nazi-fascista, que governou a Hungria entre 1944 e 45, sob comando de Ferenc Szálasi, aliado de primeira hora dos nazi alemães. A operação assassina do então partido nazista húngaro confirma que o holocausto contou com apoio e participação direta de aliados nos mesmos países que, depois, repassaram a conta da guerra aos milhões de moradores locais. A violência da segunda guerra na Hungria acabou, apenas, com o ‘cerco de Budapeste’, imposto pelas tropas do exército vermelho da União Soviética, no início de 1945.
Caminhar entre os sapatos que lembram milhares de vítimas fuziladas pelas costas, sem condições de reação, é uma experiência dolorida, que precisa ser descomemorada para que nunca mais aconteça. Ver o monumento na chuva fria do inverno desafia a memória as imaginar as águas do Rio Danúbio que, nos dias tristes do holocausto, amanheciam vermelhas com o sangue de vidas destruídas pelo desmando do autoritarismo doentio.
As imagens são de um rápido giro pela capital húngara em janeiro/2023. Lembrar de injustiças é uma forma necessária de descomemorar a violência e a morte em defesa da Vida. A instalação artística (de 2005) foi idealizada pelo cineasta Can Togay e projetada pelo escultor Gyula Pauer e integra um roteiro turístico da capital húngara sugerida para não esquecer das atrocidades do holocausto na Segunda Guerra Mundial. Alguns visitantes, sensibilizados, deixam flores e recados dentro dos sapatos à beira do Danúbio.
Para situar… Em Budapeste vivem cerca de 1,8 milhão de pessoas. A Hungria, com uma população estimada em 9,7 milhões de habitantes, é governada por uma espécie de ‘tirania moderna’ (do partido nacionalista-conservador), que em 2022 reelegeu pela quarta vez o mesmo primeiro ministro e a maioria parlamentar em uma campanha contra ‘migrantes que ameaçavam os pobres locais’ e a promessa de uma lei anti-LGBT. E como a história pode se repetir, “a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa” (Karl Marx, 1852), qualquer similaridade pode não ser apenas coincidência. Mas, este é outro debate, ainda que fundamental, pois diz respeito ao necessário combate à desinformação (mentira, fake ou inverdade) do tempo presente.
Uma sugestão para entender a Hungria em 2023? Confira texto de Agnes Heller (2019). https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/18/actualidad/1555585620_542476.html
Quer conhecer um pouco da política na Hungria? Também é preciso entender de fake News! Leia Engenheiros do caos, de Giuliano da Empoli (São Paulo: Ed. Vestígio, 2019).
Sérgio Gadini, professor da UEPG. E-mail: slgadini@uepg.br