Por Sérgio Gadini
Poderia ser a biografia de uma das incontáveis vítimas da ditadura militar, que perseguiu, reprimiu, saqueou e desrespeitou milhares de vítimas entre 1964 e 1985 em todo Brasil. Ainda estou aqui é, também, uma ficção norteada pela dura realidade de uma família que enfrentou, ao seu modo, um dos mais violentos ataques à vida humana no regime autoritário verde-amarelo. Podes estar, ainda, diante de uma aula de história do Brasil contemporâneo.
A prisão, tortura, sumiço e morte do ex-deputado Rubens Paiva, cassado e perseguido pela ditadura, não destruiu apenas a vida planejada de uma família com cinco crianças em um bairro de classe média do Rio de Janeiro, a partir do golpe militar de 1964. Não tem projeto de casa na serra, praia em fim de semana, poupança bancária e tampouco viagem de férias escolares, quando a violência é a regra do desmando governamental que se apropria e saqueia o Estado, a partir da negação de direitos humanos e sociais das vítimas.
Aos agentes da repressão, pouco ou nada importa se você é cordial, se dedica prioritariamente à família, se é religioso, tem formação profissional, endereço identificado ou acredita em estado de direito. Se você pensa – e, geralmente, basta questionar – e não abaixa a cabeça, lambe-botas ou apenas responde ‘sim senhor’ e não responde única e exclusivamente o que os tais ‘agentes da força’ querem ouvir e registrar nos autos (da repressão planejada), você não serve e não está com eles. Em um regime autoritário, não há espaço para dúvida, questionamento e tampouco racionalidade lógica dos que ousam pensar.
E não ficou ‘nisso daí ‘, pois os mesmos agentes que prendiam, torturavam e executavam as vítimas se sentiam protegidos pelas ‘autoridades’ do Estado que negavam os próprios atos de desmando e alegavam desconhecer as violências recorrentes nas delegacias, operações e departamentos da repressão planejada. Em outros termos? Fake news e desinformação já eram práticas habituais na ditadura, que apenas foram atualizadas por violadores de direitos humanos na era das redes digitais sem política pública e impostas pelo controle financeiro.
A prisão (tortura, execução e sumiço do corpo) do engenheiro e ex-deputado eleitoral pelo PTB, Rubens Paiva, em 21 de janeiro de 1971, seguido da prisão, interrogatório e violência físico-psicológica de Eunice Paiva e da adolescente filha do casal, não foram casuais, mas uma rotina de ataques e desrespeito aos direitos de milhares de vítimas em todo o Brasil ao longo de mais de duas décadas.
O filme dirigido por Walter Salles é baseado no livro do escritor e jornalista, filho do Rubens e Eunice Paiva: Ainda estou aqui (2015). Ex-estudante de engenharia agronômica na Unicamp, Marcelo Rubens Paiva ficou tetraplégico em um acidente, ainda jovem, e relata a própria biografia em outro livro anterior, que o tornou conhecido no País: Feliz ano velho (1982).
Engenheiro civil, graduado pelo Instituto Mackenzie (SP), Rubens Paiva (26/12/1929 – 22/01/1971) iniciou a militância no movimento estudantil, eleito deputado federal por São Paulo pelo PTB em 1992, foi cassado pelo golpe militar, logo após a derrubada do presidente eleito João Goulart (PTB). Rubens Paiva (interpretado por Selton Mello no filme) saiu do Brasil e retornou, levando a família de São Paulo para morar no Rio de Janeiro. Além de engenheiro, o ex-deputado também contribuiu com o Jornal de Debates e a Última Hora, em SP.
O filme relata as incansáveis buscas da esposa, Eunice Paiva (vivida por Fernanda Torres e, em poucas cenas, também por uma interpretação emblemática da Fernanda Montenegro), junto aos diversos órgãos oficiais mantidos pelo regime militar no período. É a saga e o inferno em que uma mãe e esposa precisa entrar e atravessar para cuidar de cinco filhos e manter a família sem perder o foco na incansável briga pela justiça. Embora Eunice Paiva não está sozinha, pois conta com a solidariedade de amigos e companheiros do marido assassinado, é ela que vivencia diuturnamente as dores de uma prisão, sumiço e morte por longos 25 anos, até que em 1996 a justiça brasileira reconhece a responsabilidade do Estado pela repressão que executou Rubens Paiva. “E o corpo do Rubens, onde está?”, ela pergunta a um amigo, que tenta integrar uma rede, ainda que clandestina, na solidariedade às vítimas da violência da ditadura.
A morte de Rubens Paiva só foi mesmo confirmada a partir de depoimentos à Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em 2011 (pela lei 12.528) e instalada no ano seguinte para “investigar crimes, como mortes e desaparecimentos, cometidos por agentes representantes do Estado no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, principalmente aqueles ocorridos durante o período da Ditadura Militar”. Os documentos e relatórios da CNV estão disponíveis para consulta e, inclusive, para confirmar os incontáveis desrespeitos registrados pelo filme.
E tanta luta apenas para ter um atestado de óbito do marido? Sim. E isso não é pouca coisa, quando se luta contra um regime autoritário, em que os próprios responsáveis por crimes se protegem com apoio da máquina e estrutura do Estado. No ano em que o golpe militar registra seis décadas, o lançamento de Ainda estou aqui é uma forma de descomemorar a violência e o desrespeito aos direitos humanos de milhares de vítimas, que ousam persistir na luta pelo acesso à verdade histórica e memória de quem pagou com a própria vida para derrubar o autoritarismo.
O filme dirigido por Walter Salles é também um manifesto contra a desinformação e fake news, praticada pelos agentes da repressão ao longo dos 21 anos da ditadura. E, por extensão, o filme é um alerta de que não existe democracia estável sem luta constante pela garantia de direitos, que implica defender e manter políticas públicas contra a desinformação, que cega, mente, engana e mata.
Já reconhecido e premiado (no Festival de Veneza 2024 e indicado para representar a produção brasileira no Oscar do cinema), Ainda estou aqui desperta a esperança, que insiste em olhar só horizonte e, por isso mesmo, trata-se de um filme que precisa chegar às escolas, praças e aos mais diversos espaços coletivos em todo o Brasil. Ajude-nos, gentileza!
Ficha técnica: Filme: Ainda estou aqui (2024)
Direção: Walter Salles. Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega (baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva)
Gênero: Drama, história ou biografia (quase documental, ainda que ficção baseada em relatos públicos). Duração: 136 minutos
Elenco: Fernanda Torres, Selton Mello, Fernanda Montenegro, Antonio Saboia, Caio Horowicz, Camila Márdila, Carla Ribas, Daniel Dantas, Dan Stulbach, Helena Albergaria, Humberto Carrão, Luiz Kosovski, Maeva Jinkings, Maria Manoella, Marjorie Estiano, Olívia Torres, Otavio Linhares e Valentina Herszage.
Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=_NzqP0jmk3o
* O autor é professor do Curso de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).