O conceito de amor fati – amor ao destino – segundo o filósofo alemão Friedrich Nietzche, pode ser resumido como a paz que encontramos em saber da natureza cíclica do universo. Mesmo nossas vidas sendo limitadas quando comparadas à extensão do cosmos, não é difícil que encontremos existências tomadas pela repetição de ciclos pautados por acontecimentos chaves que assombram/definem vidas inteiras. O Amor Fati é não somente a aceitação, mas a compreensão que leva ao amor pela vida que outrora foi amargurada e controlada por tais ciclos.
Com uma carreira que ultrapassa mais de seis décadas de extensão e um padrão de qualidade característico que são associados ao seu nome consolidado na história do cinema, Steven Spielberg se volta para a origem que definiu não apenas sua vida, mas a sua filosofia profissional e parte da cultura ocidental dentro da sétima arte nos últimos 70 anos. Uma marca que sempre rondou a sua obra e que agora ganha as telas sem metáforas, alegorias ou subliminaridades.
O longa conta a história de como Sam Fabelman (Gabriel Labelle) – alter ego de Spielberg – desenvolveu seu amor pelo cinema dentro de uma vida de mudanças ao lado da família nos anos 1950 e 1960. Lidando com questões como adultério, antissemitismo e a relação agridoce de dor presente no amor, o filme se torna não apenas uma confrontação árdua para o diretor – ainda que um deleite para o público – mas também um gesto de reconciliação e de amor por quem o criou. O mesmo vale para a sétima arte que permitiu que ele os levasse consigo e que lhe desse alguma chance de controle sob as consequências do que foi exposto em sua adolescência.
Falar das qualidades de Os Fabelmans é não apenas reconhecer como de praxe o virtuosismo espirituoso da mise-en-scene de Spielberg – há ao menos quatro momentos no filme que com certeza irão compor o quadro de imagens icônicas da carreira do diretor – mas apreciar como o lar em que ele cresceu exprime muito da abordagem para com seus filmes, inclusive os mais violentos e sombrios. Cada frame, cada movimento, cada luz e cada escolha de cores exalta o amor e espirituosidade presente na casa tutelada por Mitzi (Michele Williams) e Burt (Paul Dano), por mais imperfeita que ela seja.
O elenco confere ao deleite audiovisual do diretor e cia uma humanidade contagiante em sua “normalidade”. Michele Williams é sublime em como retrata o conflito de uma mulher que claramente poderia ter um futuro muito mais satisfatório caso tivesse alguém para encoraja-la, ou que vivesse em outro espaço tempo. Mas, na realidade em que se enquadra, ela é esgotada pela rotina de dona de casa que a tolhe e a faz viver em culpa por querer aproveitar as poucas chances que tem de ser compreendida e amada para além do pedestal que marido e filhos a colocam. Paul Dano consegue fazer da doçura que acrescenta a Burt sua melhor arma. Ele é um pai realista, exigente e por vezes cego ao que lhe rodeia, mas também um homem amoroso e de uma índole formidavelmente integra e ingênua.
O elenco de apoio também brilha por conta do roteiro, de Spielberg e Tony Kushnner – responsável pelos melhores trabalhos de Spielberg nos últimos 20 anos – e dá a cada um ao menos um momento para brilhar. O destaque fica para Judd Hirsch e Julia Butters que, mesmo quando os diálogos soam engessados no papel, conseguem se sobressair ao trazerem dores reais para um filme pautado em memórias.
Muito se fala da marca de Spielberg de trazer um sentimento caloroso de fechamento para suas narrativas – o que eventualmente é criticado por uma parcela da crítica, como mostra o desenho Bojack Horseman quando o personagem-título fala que o “fechamento” foi uma invenção comercial. Pela primeira vez o diretor nos mostra as complexidades dessa necessidade. Mais do que proporcionar feel-good feelings, a necessidade tem muito a ver com a ideia de controle sobre o caos em que se vive, o que gera autonomia e um efeito terapêutico; ainda que indigesto.
Como no filme, o tal feel good feeling sempre acaba embutindo um senso melancólico às obras do diretor que usualmente não reparamos de primeira por conta da sensação terna que os finais possuem. Em E.T. (1982), o alienígena é salvo mas acaba por gerar outra perda irreparável na vida de Elliot (Henry Thomas), em A Lista de Schindler (1993), o protagonista consegue salvar seus empregados judeus, mas não pode lhes poupar do trauma do holocausto e em Império do Sol (1987), Jamie (Christian Bale) consegue reencontrar os pais, mas não a infância que perdeu enquanto prisioneiro de guerra. Em Fabelmans, Sam sedimenta seu amor pelo cinema ao buscar uma carreira com o apoio dos pais, mas isso não pode salvar o casamento deles. O sentimento ambivalente de valor à sobrevivência ao trauma, que entra em conflito com a vontade de nunca o ter vivido, é uma constante em toda a obra – e vida – de Spielberg.
Contudo, aqui voltamos para o amor fati.
O trauma pode ter definido a vida de Spielberg de maneiras que vão além do que ele nos permitiu saber em sua obra – difícil não ver o namorico com Monica (Chloe East) como uma ilustração de seu casamento com a atriz e diretora Amy Irving e perceber como ele acabou tendo o mesmo destino do pai por medo de assim sê-lo. E aqui, Spielberg, mesmo lidando com as dores de se remoer o passado – por vezes de formas mais literais e menos elegantes como a questão do bullyng e antissemitismo – extrai beleza por compreender o valor até dos momentos mais árduos de sua formação.
É lindo ver como o autor, consciente ou não, fez de sua carreira um ato constante de amor e gratidão por quem o criou através do cinema. Uma ferramenta mística em que luzes, ciência e paixão se unem para emular sonhos lúcidos; como Mitzi define em sua primeira fala: “filmes são como sonhos que nunca esquecemos”. Assim como a ideia do amor fati acrescenta, pode ser uma ponte em que sempre podemos voltar, e encontrar o amor em lugares do passado que não percebíamos ter tanto valor para o que viria a acontecer no futuro.