Quando Jordan Peele decidiu se afastar do ramo da comédia e da atuação e se incluir na roteirização e direção de filmes de terror e suspense, era inevitável que dúvidas surgissem. Corra!, longa de 2017, não só surpreendeu como estabeleceu a imagem do diretor logo em seu primeiro trabalho no gênero. Nós, de 2019, repetiu o feito, apesar de críticas à estrutura narrativa.
Não! Não Olhe! (título original: Nope!), lançado no Brasil no final de agosto, provavelmente é a obra de Jordan Peele no terror que menos vai alcançar públicos extensos por conta da maneira como foi construído. Porém, uma coisa é inegável: o cineasta segue consistente e entregando aquilo que sempre prometeu, com roteiros repletos de cenas para os fãs de teorias da conspiração e um trabalho de preparação dos atores que é de dar inveja para qualquer diretor com décadas de carreira. Peele carrega consigo uma qualidade que está em falta em muitos dos diretores de cinema de terror, fruto de sua carreira como humorista: confiança. Pura, inabalável e estável. Pelo que é possível enxergar, mesmo com as legiões de fãs dedicados, ninguém acredita em seu trabalho como o próprio Jordan Peele.
Assim como os longas anteriores, é difícil definir Não! Não Olhe! sem spoilers. É uma daquelas narrativas que funcionam ainda melhor sem nenhuma informação do enredo, como um mergulho às cegas. O que é possível dizer sobre o filme é que encontramos os irmãos OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald Haywood (Keke Palmer) em uma situação confusa, assustadora e fora da realidade. Mais do que essa breve descrição pode acabar arruinando a experiência de um espectador.
Keke Palmer e Daniel Kaluuya caracterizados | Foto: Divulgação
Jordan Peele parece dar um abraço apertado nos amantes do cinema mundial ao apresentar dois personagens principais que tem sua história diretamente ligada à história do cinema em si. OJ e Emerald são descendentes do homem visto em Sallie Gardner at a Gallop (1878), projeto experimental de Eadward Muybridge indicado como uma das origens do cinema como o conhecemos. Na realidade, a identidade do jóquei negro representado nas fotografias que compõem o projeto não é confirmada, e ele é frequentemente chamado somente de “Domm”. A escolha de Jordan Peele de dar uma história, um nome e uma família a uma figura histórica do cinema parece um recado direto à indústria, em que o diretor afirma que seu nome, e o de todas as pessoas negras que fazem com que seus filmes se tornem realidade, serão lembrados para sempre.
Não! Não Olhe! é difícil de engolir durante sua primeira hora de duração, e nem Keke Palmer com sua atuação impecável e alívio cômico parece ser capaz de salvar uma narrativa que caminha devagar. A partir da segunda metade do longa, porém, o espectador consegue entender a necessidade de um começo mais lento, que apresenta seus personagens com a profundidade necessária para que nos importemos com eles. É ali, na parte em que o conflito se torna sufocante, que se reconhece Não! Não Olhe! como um original de Jordan Peele. A ação delirante se junta à atuação contida de Daniel Kaluuya como OJ e forma uma narrativa que fala sobre os animais e, principalmente, sobre a maneira como decidimos interagir com eles.
É difícil prestar atenção em algo que não seja a performance dos atores principais. Todos eles parecem estar completamente conectados em seu trabalho e entre si, e entendem seus personagens por inteiro. Outro destaque especial, além dos já citados, vai para Steven Yeun no papel de Ricky “Jupe” Park, ator infantil que, quando adulto, carrega os traumas de uma situação trágica. A situação presenciada pelo personagem é o prólogo do filme, e demora um bom tempo até que se entenda como ela se conecta com o enredo principal do longa, mas, assim que descoberta sua conexão, é possível entender a complexidade do caráter do personagem, e as pequenas dicas deixadas por Jordan Peele e Steven Yeun para que o espectador perceba as implicações das atitudes de Ricky.
O novo longa de Jordan Peele é um conto sobre espetacularização, coragem e a vontade humana de lucrar a partir de situações trágicas e incontroláveis. Não! Não Olhe! não tem uma mensagem tão clara quanto a de Corra!, e também não carrega o mesmo nível de metáforas que Nós, provando que, apesar do padrão de tornar suas narrativas em mensagens sociais, Jordan Peele frequentemente muda a maneira como faz isso, engajando diferentes públicos e conquistando ainda mais quem já é fanático por seus trabalhos anteriores.
Para os fãs de ficção científica, história do cinema e para aqueles que assistiriam qualquer obra em que Daniel Kaluuya está incluso, como a autora desta resenha, é um prato cheio. E, repetindo: Não! Não Olhe! é muito melhor quando visto às cegas.