Por Maria Helena Denck
Quando Emilia Pérez chegou ao conhecimento do público após seu lançamento no Festival de Cinema de Cannes, em maio de 2024, virais da internet começaram a tomar força, questionando a qualidade do musical e, principalmente, o motivo pelo qual o filme estava recebendo tanta aclamação da crítica europeia e estadunidense. Para a infelicidade da equipe, o leve descontentamento do público da internet não estava nem perto do que aconteceria nos meses seguintes e, principalmente, no momento em que o filme ganhou prêmios no Globo de Ouro e foi indicado a 13 estatuetas na cerimônia do Oscar de 2025.
O longa do diretor francês Jacques Audiard narra a história de Emilia Pérez (Karla Sofía Gascón), uma das líderes do narcotráfico mexicano que contrata Rita (Zoe Saldaña) para ajudá-la a realizar cirurgias de redesignação de gênero para o feminino. O filme ainda conta com Selena Gomez no elenco, interpretando Jessi Del Monte, a esposa de Pérez.
A narrativa é dividida em números musicais com letras e estruturas melódicas questionáveis e a boa direção coreográfica de Damien Jalet. Quando pequenos trechos do filme começaram a circular na internet, foram essas características que chamaram a atenção em um primeiro momento: para um musical, Emilia Pérez parece ter medo de fazer música. Com melodias praticamente faladas e letras que não atribuem qualidade alguma ao filme – como é o caso de La vaginoplastia, um dos primeiros números a chegar à internet – fica difícil compreender os motivos pelos quais a direção não seguiu com um filme tradicional, sem a estrutura musical, que claramente diminui o valor artístico e a qualidade do longa.
Não bastasse a polêmica sobre a própria qualidade do filme, as coisas pioraram quando Emilia Pérez chegou ao público latino-americano. Em 2025, a temporada de premiações possui um candidato próprio para representar a América Latina: o longa de Walter Salles, Ainda estou aqui. Para que Emilia Pérez tivesse qualquer espaço de carinho ou até mesmo de consideração no coração dos latinos, a equipe teria de estudar profundamente a cultura mexicana. O que aconteceu foi, justamente, o contrário.
Membros da equipe de escolha de elenco e o diretor afirmaram, de princípio, que não havia talento bom o suficiente no México para a contratação de atores, o que justificaria a presença de atrizes estadunidenses com sobrenomes latinos e um sotaque forçado que, por coincidência, só começou a aparecer durante a campanha. Mais recentemente, Audiard afirmou que o espanhol era a língua dos imigrantes – e, também, a língua da pobreza. Para um filme que se afirma como uma homenagem ao México, não há indícios de que qualquer pessoa envolvida sinta o carinho que a campanha deseja passar.
A indicação de Karla Sofía Gascón ao Oscar de Melhor Atriz é histórica: ela é a primeira mulher trans a concorrer ao prêmio. O fato de Gascón não ser mexicana chega a passar despercebido quando comparado aos outros elementos que fazem parte da reputação da atriz. Após afirmar, sem provas, que a equipe de Fernanda Torres estava movendo uma campanha de ódio contra Emilia Pérez, foram descobertas falas de Gascón que continham conteúdo islamofóbico, racista e comentários ofensivos sobre a própria cerimônia do Oscar e a colega de elenco, Selena Gomez.
Desde então, a reação do público toda vez que o longa recebe algum prêmio é a mesma: como a opinião da “crítica especializada” pode ser tão diferente da opinião de quem assiste ao filme casualmente? A resposta não é simples, mas reúne uma grande – e caríssima – campanha realizada pela Netflix, e o fato de que, querendo ou não, o público do exterior não poderia ligar menos para os sentimentos da América Latina como um todo.
Voltemos ao título: quando paramos de pensar nas polêmicas, nas acusações e na campanha que só funciona com executivos do cinema, o que sobra para Emilia Pérez? Quase nada. O filme possui um único número musical que ainda carrega um pouco de qualidade, El mal, e alguns momentos em que a montagem do filme se torna interessante. As atuações também conseguem se sustentar até o fim, apesar de não possuírem qualidade no âmbito musical – com exceção de Selena Gomez, que é boa cantora, mas não conseguiu dar o seu melhor como atriz.
A realidade é que o filme teve muitas oportunidades de fazer algo bom. A narrativa falando sobre a vida de uma mulher trans dentro do cenário tão conhecido do crime do México e sobre o sofrimento das famílias que são vítimas dos cartéis é engolida por estereótipos que desrespeitam a cultura de um país inteiro, que sequer teve espaço para contribuir. No final das contas, Emilia Pérez finge conhecer o México, os votantes da temporada de premiação fingem que acreditam, e resta um povo sem voz, assistindo enquanto a equipe sobe nos palcos e discursa sobre a importância do longa para a América Latina.
O restante da temporada é um grande mistério para Emilia Pérez. Com a saída de Gascón da campanha da Netflix e as polêmicas tomando cada vez mais espaço na mídia estadunidense, não há como saber qual narrativa vai se sustentar durante o Oscar. Um filme imprevisível fazendo parte de uma premiação mais imprevisível ainda.