Por Mateus Silva Amantino
Laboratório de Perícia da Polícia de [CENSURADO]
Evidência #2, caso C-7, “Corpo-Seco”
[Transcrito do diário encontrado na cena do crime pela perícia. As datas
parecem ter sido rasgadas das páginas]
Chegando do trabalho, tarde da noite, em uma hora em que os únicos
nas ruas eram cães e pessoas perigosas, naquela noite era como se eu fosse
a única pessoa do mundo. O que me importava era chegar em casa antes que
caísse no sono ali mesmo, no meu carro.
Foi quando percebi que realmente havia algo de errado, quando meu
cão não veio me dar as boas-vindas assim que girei a maçaneta da porta.
“Talvez estivesse dormindo”, pensei, “talvez estivesse tão cansado quanto eu”,
era uma mentira conveniente, aquele bichinho nunca se cansava, ainda assim,
fui até sua casinha no quintal, buscando-o. Nada. No sofá, onde gostava de
dormir às vezes, também não; no meu quarto não estava, nem mesmo na
cozinha ou na lavanderia. Chamá-lo não fazia nada, balançar seu pote de
ração também não, a cada tentativa eu me preocupava mais e mais. Quando
estava perdendo as esperanças, ouvi um ganido abafado de dor vindo de
algum lugar e imediatamente corri para sua origem.
No meu quarto, debaixo de uma pilha de cobertas que eu tenho certeza
que não estava ali antes, o encontrei deitado no chão, de lado, ofegante,
gemendo como se tivesse comido algo que não devia, mas eu nunca deixo
nada por cima na cozinha e todos os armários e gavetas estavam fechados.
Me abaixando para abraçá-lo e tentar descobrir o problema, reparei algo
grudado na barriga dele, parecido com uma raiz de árvore, saindo do chão por
entre as tábuas do piso. Remover a vinha o fez melhorar quase na hora,
deixando apenas uma marca vermelha onde estava e fugindo de volta para
dentro do solo.
Depois de acontecer mais duas vezes, a cada dia com mais raízes,
decidi deixar meu cão com um vizinho ao sair para trabalhar, dizendo que ele
não estava se sentindo bem, ficando sozinho quase o dia inteiro. Naquele dia o
busquei quando cheguei, meu vizinho o devolveu com toda a simpatia e alegria
do mundo, me contando como ele foi um bom garoto e mais algo que não ouvi.
Me distraí com uma coisa que vi entre as cortinas da janela de sua sala:
parecia uma pessoa me encarando, suas feições ocultas em sombras, só o que
podia se discernir eram as silhuetas de braços tão magros que podia muito
bem ser um esqueleto pendurado ali. Um muito convincente.
O homem estalou os dedos em frente a meu rosto, chamando minha
atenção e perguntando se eu estava bem, meu cão se acovardava atrás de
mim, a silhueta já não estava mais lá.
Disse apenas que estava cansado e fui embora.
Quando estava trancando a porta de minha casa, porém, ouvi um som
como se algo batesse no portão, lá estava a silhueta novamente, apoiada entre
as grades, imóvel, posicionada de modo que mais uma vez ocultasse suas
feições, mas nem todas elas, pois uma de suas mãos, erguida entre os vãos do
portão, estava perfeitamente visível em toda sua magreza, com uma cor
doentia e unhas longas que poderiam muito bem ser garras.
A luz do poste em frente à minha casa oscilou várias vezes, deixando o
portão completamente escuro. Em uma fração de segundo pelo qual ficou
claro, juro ter visto a cabeça se mover para me encarar antes de sumir
completamente. Um sussurro em meu ouvido fez calafrios percorrerem minha
espinha e me convenceram a finalmente trancar a porta o quanto antes.
“É só coisa da minha cabeça”, pensei, “estou cansado demais, e vendo
coisas”.
Outra mentira conveniente.
Por mais cansado que estivesse, não dormi aquela noite, todo som me
deixava com medo e a noite estava estranhamente barulhenta.
As “visões” começaram a aparecer mais cedo hoje. Quando estava no
banheiro do trabalho, vi uma porta se abrir no espelho enquanto lavava as
mãos, puxada por uma mão ossuda com unhas longas, mas quando olhei para
trás a porta estava fechada e no espelho nada se via. Durante o dia inteiro ouvi
sussurros em meus ouvidos, palavras que não faziam sentido, que eu nem
sabia se sequer eram palavras.
No carro, quase causei um acidente quando vi um vulto sentado no
banco de trás pelo retrovisor, me encarando com olhos vazios, e me virei para
trás, com medo.
Mais uma vez, o vulto esquelético estava na frente da minha casa, em
uma posição diferente. Ambos os braços, uma perna e parte da cabeça
estavam para dentro, mas ele sumiu da mesma forma. O sussurro em meu
ouvido foi agora um grito estridente e distante, como se alguém fosse atacado,
eu torci para que fosse mesmo apenas uma alucinação.
Outra vez não pude dormir, sempre que fechava os olhos ouvia os
sussurros e sempre que os abria novamente via um vulto transparente por uma
fração de segundo.
Meu cão sempre rosnava para a direção em que aquilo aparecia, já não
tinha tanta certeza se eram apenas alucinações.
Faltei ao trabalho hoje, as visões estão cada vez mais frequentes, vi o
vulto esquelético andando pelos corredores. No canto de minha visão, apoiado
em postes e janelas, seu rosto aparecia por uma fração de segundo nos rostos
de meus colegas; em casa, o esqueleto já passou pelo portão e a cada dia se
aproxima mais da minha porta. Sua voz sussurrava coisas ininteligíveis em
meu ouvido com um tom que as faziam parecer ameaças, vez ou outra eu
ouvia berros à noite, não lembro quando foi a última vez que dormi.
Não consigo pensar direito, isso não é uma alucinação, é algum
demônio, eu devo ter irritado Deus de alguma forma e esta é minha punição.
Nunca fui de ir a igrejas, mas dessa vez eu precisava, me confessei ao
padre, pedi sua ajuda, ele me deu algumas orações a fazer.
As vozes não paravam quando tentei rezar.
Elas riam.
As palavras no papel onde o padre escreveu o nome das orações se
distorceram para formar uma frase:
“Seu Deus não se importa comigo. Ele me odeia. Ele não chegará perto
de mim.”
Quando pisquei, as palavras voltaram ao normal.
Certo dia, ao acordar, fui lavar o rosto e cometi o erro de olhar no
espelho.
Meu rosto ainda era o meu, por mais que emaciado, pálido, com olhos
leitosos, cabelos caindo, pele se soltando do músculo, coberto de sangue e
caindo aos pedaços, assim como tudo ao meu redor.
Tudo sumiu num instante.
Cobri todos os espelhos da casa naquele dia.
Meu cão está morando com o vizinho agora.
Não tenho condições de cuidar dele.
O demônio está quase na minha porta e se aproxima a cada noite.
Tenho medo do que vai fazer quando entrar.
Suas feições estão mais claras do que nunca sob a luz de meu quintal
da frente.
Ele era magro, tão magro que podia contar as costelas.
Sua pele era podre, onde ainda a tinha.
Seus olhos, dois buracos vazios, às vezes brilhavam numa cor estranha.
Suas mãos e pés tinham unhas tão longas que mais pareciam as garras
de um monstro.
Estava coberto de terra e raízes como se tivesse se erguido do túmulo.
E estava vindo para mim.
Não tive a coragem de sair de casa hoje.
Estou no chão de meu quarto e, ao meu redor, papéis com orações
anotadas. As palavras se contorcem e dizem coisas.
Deus não me perdoa.
O Diabo me despreza.
A Terra me rejeita.
Tenho medo.
Medo.
Ele está na porta.
Acho que não vou mais escrever nesse diário. O fantasma grita pra mim,
seu corpo ressecado me caça.
Eu vou…
[Fim do transcrito. Todas as outras páginas foram arrancadas ou estão
cobertas de sangue e ilegíveis]
[Nota do perito: Eu nunca vi algo assim antes. Difícil de entender o que
aconteceu. Alguns de meus colegas estão apelidando o caso de “Corpo Seco”.]