Eu nunca conheci meu pai. Desde que me entendo por gente, minha família é: eu e a minha mãe. E sempre vivemos bem, nunca senti falta de uma figura paterna. Muitas vezes até penso que foi bom minha mãe ter sido abandonada grávida, acho que um homem nessa família não aceitaria muito bem minha transição de Mitã para Kuña. Não penso muito nisso, foco em ajudar minha mãe na pesca e vender os peixes para garantir nosso sustento.
Entretanto, um dia eu tive que ir sozinha para o rio. Minha mãe estava doente e mal conseguia levantar da cama. Queria ficar para cuidar dela, mas o seu gênio forte não me deixou nem colocar o pé para dentro do quarto com remédio. Então fui para o rio, trabalhar como sempre.
Estava sendo uma pesca parada. Haviam poucos peixes, então fui um pouco mais adiante de onde habitualmente jogo as redes. Remei pouco mais de 500 metros quando sinto algo bater no bote. “Deve ser uma tartaruga” penso eu. Continuo a remar, mas parece que estou sendo impedida de seguir em frente. Olho para trás em direção a água e vejo um corpo. Era um homem. Inconsciente e de bruços. Estava usando um terno branco ensopado e um chapéu da mesma cor flutuava ao seu redor. Devia estar a pouco tempo na água, sua pele ainda aparentava estar normal.
Sem titubear, tento puxá-lo para cima do bote na esperança de que ainda esteja vivo. Com muito esforço, consigo colocá-lo deitado e paro para observar seu rosto. É um homem lindo, claramente descendente de indígenas. Há uma mancha vermelha em seu paletó na região da barriga. Checo sua respiração. Está muito fraca.
Atrapalho-me com os remos e tremulamente navego em direção à minha casa. Não olho para o homem durante todo o trajeto, mas ainda escuto um barulho baixo de respiração. Tenho esperanças de que poderia resgatá-lo.
Porém, ao chegar na margem do rio, olho para onde estava seu corpo. Não está mais lá. Agora em seu lugar há somente um boto cor-de-rosa com um ferimento na região abdominal. Assustada, tropeço no bote e caio de costas na areia. “Como é possível?” penso incrédula “Até agora tinha um homem comigo no barco, devo estar louca!”. Levanto-me ainda atordoada, olho para a pequena embarcação. Novamente há um homem com o paletó branco encharcado.
Corro assustada para casa enquanto, aos berros, chamo minha mãe. Ela aparece em uma fresta da porta da frente, seu rosto de sono expressa que estava dormindo. Sem modos, abro bruscamente a porta e puxo-a para o bote. Ao mesmo tempo conto o que aconteceu para ela, que parece cada vez mais acreditar que enlouqueci de vez.
Chegamos no barco e minha mãe fica estática. Ela encara o homem com uma mistura de medo e surpresa no olhar. Sua boca abre para proferir algo, mas suas cordas vocais parecem estar cortadas. Quando o som finalmente decide sair de sua boca, vem de modo gaguejado.
Consigo entender o nome Ipirã. Ela para mim. Em meio de mais gaguejos, entendo que esse homem é meu pai. Sinto minha cabeça pesar e de repente estou no chão.
Acordo aterrorizada. Levanto rapidamente a procura de mamãe. Encontro-a acariciando os cabelos do homem que responde por Ipirã. Ele está deitado e ela sentada na sua frente. Trocam olhares de paixão extrema. Encaro-os por um tempo, até que ambos percebem minha presença e afastam-se assustados.
Ipirã desvia o olhar de minha mãe e foca totalmente em mim. Começa a me atirar perguntas sem parar. Qual meu nome. Minha idade. O porquê de eu ser alta e com ombros largos. Se sou virgem. Se penso em ter filhos. Se quero engravidar. Se teria relações com homens mais velhos. Neste momento o interrompi e furiosa lhe digo que esta boneca não é uma Barbie. Saio de casa e me sento à beira do rio esperando que tenha entendido meu recado.
Os dias passam e Ipirã parece estar cada vez mais aconchegado em nossa pequena residência. Sua presença me incomoda, mas vejo minha mãe cada vez mais deslumbrada por ele. É como se um tipo de feitiço tivesse sido feito nela.
Ela voltou a me tratar por Mitã. Sei da influência de Ipirã nisso. Desde que descobriu da minha transição, ele me encara com nojo. Uma expressão totalmente diferente da que me encarou em seu quase-leito de morte.
De vez em quando, escuto os passos daquele que deveria ser meu pai em direção ao rio no meio da noite. Sua primeira parada na volta sempre é em frente da minha cama. Ele espera que eu o olhe para que enfim saia de perto de mim e me deixe dormir em paz.
E hoje não era para ser diferente, mas decidi que seria. Ao ouvi-lo levantar em direção a porta, fiz o mesmo. Segui-o até a margem do rio, onde o vi se transformar no mais galanteador dos animais.
Sentei e esperei que voltasse de seu passeio noturno. O sol estava prestes a raiar quando presenciei pela segunda vez sua transformação. Ele me olhou incrédulo. Seus olhares evoluíram para uma série de xingamentos e palavras chulas relacionadas à minha identidade de gênero.
Tranquilamente levantei e cheguei bem perto de seu rosto. Calou-se. Começo a brincar com seus cabelos, até encontrar um buraco no topo de sua cabeça. Pressiono-o. Ele tenta lutar, mas em pouco tempo há novamente um boto cor-de-rosa na minha frente.
Carrego a carcaça para a água e a vejo afundar. Espero que Tupã não me puna por uma oferenda como essa.