Por Iolanda Lima
Por Iolanda Lima e Victor Gabriel Schinato
A peça “Uma Criatura Boa e Dócil” apresentou ao público nos dias 27 e 28 de julho uma relação fundamentada em um ardiloso ciúme. Baseada na obra de Fiódor Dostoiévski, o enredo é ambientado em uma São Petersburgo no século XIX, marcada por conflitos políticos e desigualdade. O espectador acompanha uma dupla de personagens através de uma desventura amorosa com ar de tragédia anunciada.
Para Mariele Zanin, atriz principal, a peça toca num lugar íntimo das pessoas, faz parte do tipo de arte que transforma quem a consome, causando reflexões sociais, impacto e confusão no público. A adolescente órfã, interpretada pela atriz, vem de um passado trágico manchado pela morte e ornado com o abuso de suas tias, que se viram obrigadas a cuidar da garota. Astuta e sagaz, a personagem sabe como esconder suas presas para se proteger e manipular todos à sua volta. Em seus 16 anos, é grande a pressão para que logo se case, ou seja vendida a um comerciante endinheirado.
O dono da loja de penhores é um velho homem, encenado por Emerson Rechenberg, com tantas histórias quanto objetos antiquados empoeirados em seu comércio. A vergonha foi uma constante em seu passado, do qual ele tenta correr com toda energia. Rígido, se agarra em seus próprios valores morais e procura alguém que possa se moldar a eles.
A órfã, em desespero na busca da independência das tias, vende qualquer objeto que possa encontrar, incluindo uma rota jaqueta de pele animal, que marca o início de uma história fadada ao desastre. O penhorista, fascinado pela aparente serenidade e mansidão da garota, vê nela uma oportunidade de encontrar companhia para si. O que começa com graça e idas ao teatro, se torna uma relação corroída por ganância e possessividade.
Segundo Mariele Zanin, a relação ambígua é composta por uma série de expectativas falhas de ambos os lados, levando a dupla a uma relação abusiva e controladora.
Com o uso de um cenário modesto e funcional, a peça se constrói ao redor de um engenhoso jogo de luzes, delimitando os planos, cenários e monólogos de cada personagem. A caracterização convence o espectador da pouca idade da órfã e do perfil do agiota.
Na narrativa, se torna impossível apontar certos e errados, pois ambos personagens estão imersos num mar de amoralidade. O penhorista persegue a garota, a adultizando e esperando por uma relação madura de uma adolescente. Já a órfã, visando manter seus caprichos, precisa se tornar uma criatura que apenas assente e sorri educadamente. Este conflito tem seu ápice no suicídio da garota, que só se vê como eternamente mansa no momento em que já não mais respira.
De acordo com Mariele, o que no início era uma esperança para a jovem, se tornou uma vida insuportável, fazendo a morte parecer mais confortável do que a sua realidade.
O conto “Uma criatura dócil” é originalmente narrado apenas pela ótica do dono da loja de penhores, mas o roteiro da peça adicionou o ponto de vista da órfã para então compreender melhor a evolução dos conflitos e as motivações por trás de cada personagem. A mudança acrescenta uma nova visão sobre o relacionamento e a codependência ali estabelecida.
A atriz diz que participar do espetáculo é uma honra, um privilégio e uma grande satisfação. Ela observa, no entanto, que é necessário que artistas ocupem espaços fora do palco, para que a arte exista e resista em todos os lugares.