O corpo da obra do cineasta Baz Lhurmann sempre teve predileção pelo mito trágico de Ícaro. Seja no musical romântico Moulin Rouge (2005), no ultra fashion e art deco O Grande Gatsby (2013) ou no berço do hip hop em Get Down (2016-2017), sua decupagem burlesca sempre acaba em estórias sobre a natureza ingrata do espetáculo. Elemento indissociável da história do cinema americano que sempre teve fissura por estórias como essa em clássicos como Cidadão Kane (1941), Lawrence da Arábia (1962) e Touro Indomável (1980).
Em Elvis (2022), o diretor acha o herói cristalino para exteriorizar suas neuras e fascínios sobre a natureza perversa da vida olimpiana dentro do show business. O filme conta a trajetória de Elvis Presley (Austin Butler) sob a perspectiva daquele que criou o mito do rei do rock e também o abusou até não sobrar mais nada do que fora: o empresário Coronel Tom Parker (Tom Hanks).
Interpretado como uma força da natureza pelo novato Austin Butler, o ícone mor dos baby boomers não poderia pedir por uma representação melhor. Ainda que díspar da fronte arredondada de Presley, Butler encarna com perfeição tudo que associamos a Elvis: ginga, sensualidade, presença e, principalmente, o timbre de voz. Butler nos dá um personagem que é magnético no charme e integridade artística e trágico no quão longe é disposto a ir em função disso. Como ressaltam os planos de silhueta e câmera lenta de Lhurmann, nada menos que icônico.
Tom Hanks, ator de envergadura muito maior do que o rótulo de bom moço lhe estereotipa, complexifica um vilão que, nas mãos de um intérprete menos capaz, seria um mais um Mefisto caricato. Debaixo da maquiagem pesada, a interpretação de Hanks faz de um aproveitador sem remorso alguém cuja visão de mundo não difere pessoas de cifras e que por isso teve a oportunidade de deslanchar muito tarde. Alguém que claramente se vê apenas como um sobrevivente que luta com as armas que a vida lhe deu.
Em uma decisão sagaz, o roteiro mostra a história sob a perspectiva de Parker. O que nos inteira sobre sua natureza hipócrita e cria tensão por antecipação do como ele arruína a carreira de Elvis enquanto posa de figura paterna para o astro. O roteiro de Lhurmann e cia brilha quando ornamenta momentos decisivos da vida do cantor ao som de suas composições marcantes. Dentro de pequenas sequencias que unem tragédia e espetáculo, a condução prima por nunca deixar de fazer cada beat ter seu devido impacto.
Os excessos de Lhurmann, outrora sua cruz para a imprensa especializada, dão o sabor da estória. O uso anacrônico de canções cria avatares no passado para música contemporânea. A fotografia exuberante remonta a textura technicolor das décadas de 50 e 60 para trazer textura para esse universo e depois emudecer-se conforme a vida e obra de Presley rumam para o destino final. E a edição, mordaz ferramenta de ritmo, faz dos mil e um recursos empregados na dilatação do tempo um adendo frenético para ilustrar o quão intoxicante foi o poder etílico da fama e do prestigio sob seu protagonista. Um poderio audiovisual que nem Aaron Sorkin seria capaz de criar via diálogo e que Lhurman emprega no auge de sua criatividade.
Ainda que alguns segmentos e personagens secundários soem atrofiados dentro da trama e a escolha de Olivia de Jonge seja no mínimo ambivalente para o papel de Priscilla Presley, a obra nunca decepciona. Ícaro nunca esteve mais vivo do que na epopeia americana clássica do menino do Alabama que voou perto demais do sol e caiu atrás dos portões de ouro do hotel Continental de Las Vegas. Como dizia George Bernard Shaw, “existem duas tragédias na vida: Uma é não conseguir o que se quer, a outra é conseguir”.