O cineasta canadense Dennis Villenueve sempre prezou em suas obras pelo estabelecimento de uma sensação atmosférica que alinha a empatia do espectador ao calvário de seus protagonistas no meio em que estão inseridos. Todos os esforços do diretor priorizam que o público experimente as provações morais e sensoriais que os personagens são submetidos para que sintam profundamente as implicações dos temas e meandros abordados nessas histórias. Seja no universo dúbio e sombrio do narcotráfico em Sicário (2015), no acachapante e denso futuro de Blade Runner 2049 (2017) ou no pacato e traiçoeiro subúrbio de Os Suspeitos (2013), todos usam do apelo sensorial para potencializar a experiência.
Em Duna (2021), o modus operandi do diretor tem carta branca para fazer seu filme mais idiossincrático e, ainda assim, o mais direto de sua filmografia. Ao escolher adaptar a obra homônima de Frank Hebert em duas partes, o diretor se dá o direito de usar praticamente toda essa primeira parte para apresentar e esmiuçar o grandioso e inventivo palco da aventura criada em 1965.
No filme, o clã dos Atreides é designado pelo imperador do universo a substituir os Harkonnen na extração de mélange, substância primordial para viagens intergalácticas, no planeta Arrakis. Tendo de lidar com a relação conturbada com colonos traumatizados pela gestão anterior em uma terra desértica e hostil, uma demanda exorbitante de extração e atos de sabotagem do clã rival, Paul Atreides (Timothee Chalamet) e sua família se veem presos a uma espiral de sublimação e violência em que a magia e tecnologia que dispõem não apenas são paliativas como maximizam o medo do fracasso e da morte que ronda a empreitada.
Em Duna, é nítido o interesse de Villenueve de criar um épico fantástico aos moldes de David Lean, onde a iminência do caos é mais contagiante do que a erupção. Das imagens lavadas e densas ao ritmo lento, o filme faz de tudo para definir a si próprio como o extremo oposto a fantasias space operas[1] tradicionais e enraizadas na cultura pop como a franquia Star Wars.
A abordagem não deixa de ser corajosa. Optando por fazer de cada sequência, introdução e exposição um banquete para olhos e ouvidos às custas de uma dramaturgia subordinada ao ritmo convencional de blockbusters, Villenueve e equipe constroem esse universo de forma genuinamente original. Algo raro visto que a pasteurização criativa deixou de ser desleixo para se tornar ideologia profissional em Hollywood atualmente.
O resultado é ambivalente. Para os que anseiam por algo mais dinâmico, enraizado na progressão estrita de conflitos e suas ramificações, certamente saíram decepcionados com o hermetismo de Villenueve e companhia. O amor do cineasta pelo material original o impede de tratar a riqueza da obra de Hebert de forma indiferente e corriqueira, visto que tanto para os Atreides como para o público, Arraquis é uma oportunidade e também um mistério enervante. Tudo suscita tal contradição, logo, tudo que aparece em tela se comporta como um enigma que aguça o interesse e a atenção do olhar estrangeiro e colonizador do clã.
Por vezes tal amor ao detalhe e apelo sensorial soam exagerados e monótonos. Na veemência de fazer o público ver e sentir o que acomete na mente de Paul, o filme ocasionalmente é sufocado por seu privilégio a beleza estética sob a organicidade do ritmo da ação.
Contudo, para os que apreciam o estilo do diretor, demonstrado aqui em plena potência como em Blade Runner 2049, Duna será uma forte porta de entrada para o exuberante universo que se propõe a nos introduzir.
Cada grupo, local, gesto e objetos possuem elementos que nos instigam a compreender como a espiritualidade da obra de Hebert flui de forma única conforme cada indivíduo interpreta e assimila a história e papel de Arrakis e seus habitantes no escopo do império galáctico. Vide a discrepância entre a introdução dos Sadaukkar, exército de elite do império, e dos nativos de Arrakkina. Os cânticos religiosos possuem tons e ritmos semelhantes. Mas para um ele é uma motivação grotesca para a barbárie enquanto para o outro é um louvor à sacro a figura messiânica de Paul.
A coesão criativa de Villenueve faz com que cada departamento tenha seu potencial aproveitado em confluência. Todo o contingente técnico é unido para criar um filme rico em texturas e formas que por si só já contam visualmente histórias e desfechos sobre as dinâmicas de conflito que regem a política e sobrevivência em Duna.
Quando levamos em conta o poder de tamanha carga narrativa, e como é exposta apenas através de imagens e sons, a morosidade rítmica e eventuais excessos soam como meros deslizes quando denotado que são frutos de uma fonte rara de inventividade. A produção é elaborada com primor e domínio excepcional das infinitas possibilidades da linguagem audiovisual para nos presentear com o que o gênero fantástico tem de melhor: Um mundo onde tudo pode ser reconhecido, mas cuja apresentação diferenciada nos incentiva a desvendar cada partícula que o compõe.
Assim como nos filmes de Terrence Malick, grande referência e inspiração de Villenueve, a riqueza visual e abstração narrativa de Duna pode ser tratada como um capricho por aqueles sem paciência para perscrutá-la. Mas para os que aceitam e abrem-se para tal abordagem, a obra se torna, ainda que imperfeita, uma viagem sensacional para os amantes do poder senso-imagético que apenas o cinema pode nos oferecer rumo às contradições e vastos esplendores oriundos da criatividade de Frank Hebert.