Emille Durkheim a tempos já diagnosticou a existência da criminalidade urbana como sintoma de um problema cuja a responsabilidade pende na ineficácia do poder público em todas as extensões que lhe competem zelar. Como nas melhores estórias do gênero noir, contos sensacionalistas oriundos de livretos que ganharam prestigio no melodrama expressionista do cinema Pós Segunda Guerra Mundial, o crime- mais especificamente o assassinato- é meramente uma penugem solta que se puxado, desenrola o tecido social até o expor toda a corrupção e disfuncionalidade que não podem mais serem encobertas pelos beneficiados por tal decadência. Sabendo eles ou não desse papel que exercem.
Buscando alçar o vigilante noturno mais icônico da cultura pop à novos territórios no cinema-desafio considerável se levarmos em conta que esse é o terceiro reboot que o personagem ganha em menos de 20 anos – o diretor Matt Reeves se inspira nas épocas de formação do herói pré CMMA1 e na dos anos 80 – onde ele passou por grandes crises morais e existenciais-, para confrontá-lo em seu mito de formação e questioná-lo sobre sua responsabilidade no caos que tenta combater.
Imerso na estética neo-noir, o longa-metragem traz Batman (Robert Pattinson), pouco experiente em seu segundo ano de combate ao crime, tendo de lidar com o sinistro assassino serial Charada (Paul Dano). Este não apenas se regozija com o pânico que causa na decadente cidade de Gotham, mas também deixa claro a disciplina de um cavaleiro templário com que conduz sua missão de desmascarar as mentiras em que ela foi atirada pelos criminosos que a administram.
Nunca antes o medo esteve tão associado a figura do Batman como nesta obra. Mesmo sendo componente basilar em sua motivação na trilogia de Christopher Nolan (2005-2012), o medo dessa vez deixa de representar a figura do herói para emanar dele. Caracterizando o Batman de Pattinson como um anjo vingador implacável em sua fúria contra a cidade que lhe roubou a família- algo que a edição de som valoriza magistralmente ao fazer sua movimentação sempre soar pesada e desconfortável para todos que compartilham o ambiente- Reeves opta por fazer da figura do herói a própria materialização do pânico e da raiva vingativa dos impotentes cidadãos de Gotham frente ao caos urbano em que vivem.
Tal abordagem se beneficia da ambientação desoladora do gênero noir e da grande capacidade de Reeves de visualmente ilustrar cenários erosivos- vide seu esplendido trabalho nos dois últimos filmes da saga Planeta dos Macacos (2014-2017). Mais do que retratar o imaginário comum de decadência urbana, a imaginação de Reeves e cia faz tal caracterização ir a fundo no que o gênero tem de mais potente: A formação de uma atmosfera intoxicante que bestializa todos os expostos a ela.
Em um esforço extraordinário na criação de uma das Gothans mais expressivas já feitas, a direção de arte exterioriza as mazelas da cidade através de suas construções abortadas, prédios sedentos por recauchutagens para cobrir suas fundações expostas por vândalos e bueiros sempre vaporizantes em sua retratação do regurgito inevitável do local contra a criminalidade. Da mesma forma, Batman exterioriza suas chagas da alma tanto na fúria e inconsequência com que trata seus adversários, como no modo alienante e absurdamente desgastado em que vive quando disposto da indumentária que aderiu como sua verdadeira pele- Mérito da composição gótica de Pattinson que sabe como alternar entre o desanimo enfermo e os espasmos coléricos do personagem.
Mas de nada serviria um ambiente tão meticulosamente construído se não houvesse uma história que o explorasse da maneira adequada. Mesmo empalidecendo frente a expoentes superiores do gênero como Se7en (1995) e Chinatown (1974), o roteiro de Reeves e Peter Craig deve ser exaltado por, primorosamente, conseguir criar e manter o interesse do espectador em uma trama de três horas sem desvirtuar a abordagem a que se propõem.
Fazendo o protagonista vagar por situações, ambientes e personagens entorpecidos pelos poderes, seduções e agressões da ilegalidade- méritos de elenco e do roteiro que cria um distinguível espectro de ebulição moral para situar cada personagem- a condução de Reeves é eximia por aproveitar dentro da estrutura episódica do filme os altos e baixos da dicotomia freudiana, em que prazeres proibidos e choques fatalistas são mesclados caoticamente em contos de perda de inocência, das narrativas noirs hegemônicas.
A trilha sonora do colaborador de longa data de Reeves, Michael Giachinno, merece destaque por ser o grande elemento que une tanto tom, quanto ritmo e temas da história. Inspirando-se no trabalho de Shilrey Walker na série animada de 1992 e acrescentado nuances sinuosas para personagens como Mulher Gato (Zoe Kravitz) e Charada, mais de uma vez a trilha do compositor deixa de ser um complemento das cenas para atuar ativamente dentro narrativa.
Os melhores exemplos são na primeira cena de interação entre Batman e Mulher-Gato, onde a mescla de suspense e atração é justaposta, e na cena de perseguição contra ao Pinguim (Colin Farrel). O tema principal surge como uma canção burlesca e cresce até se tornar operístico a lá Richard Wagner.
Seguindo a convenção do gênero noir em seu final caucionário, o filme apresenta uma irônica, ainda que otimista, visão do herói. Batman, até então autointitulado e saudado como a materialização da vingança em Gotham, acaba por sentir na pele e na alma o vindouro efeito do veneno que tomou para definir sua vida e a da cidade até então. Às duras penas, Bruce Wayne descobre que não há catarse que compense o fato de que em termos de vingança, os únicos punidos somos nós mesmos.
Tal choque doxal devastador promete consequências sérias para o futuro de uma Gotham, assim como o herói, forçada a se reconstruir. Um futuro, que assim como Batman, mal podemos esperar para acompanhar nos próximos capítulos da saga de Reeves.
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1 Comics Magazine Association of America ou Associação Americana de Revistas em Quadrinhos, organização a qual foi atribuída a autoridade pela observância da aplicação do “Código dos Quadrinhos” (Comic Code Authority) foi criada na década de 1950 pelas editoras como uma forma de autocensura no conteúdo dos quadrinhos americanos, em resposta a uma recomendação do Congresso e ao clamor moralista insuflado pelo psiquiatra Fredric Wertham, autor do livro Seduction of the Innocent