Edgar Wright é um cineasta ímpar. Ao longo dos 20 anos de sua carreira ele tornou-se uma referência quando se fala em cinema de ação com comédia. Seu virtuosismo na condução e edição meticulosa das cenas são sempre inventivas em sua capacidade de criar energia cinética para cada situação que os roteiros propõem. O que faz dele um exímio showman do audiovisual contemporâneo.
Contudo, nos últimos cinco anos Wright tem se dedicado a acrescentar tons mais sóbrios às suas estórias. Em “Baby Driver” (2017) seu senso de diversão e temas recorrentes como amizade e amadurecimento continuam presentes, mas em nada lembram a galhofa e farra que a trilogia “Cornetto [Todo Mundo Quase Morto (2004), Chumbo Grosso (2008) e Heróis de Ressaca (2013)] e “Scott Pilgrim Contra O Mundo” (2010) esbanjaram. O que nos traz para o seu novo, mais ambicioso e mais sombrio projeto até a data, Noite Passada em Soho.
O filme acompanha Elouise Turner (Thomasin McKenzie), jovem interiorana que chega a Londres para realizar o sonho de virar uma estilista. Apaixonada pela cultura londrina dos anos 60, ela é acometida por uma experiência singular. Toda noite quando se deita para dormir é transportada para a pele de Sandie (Anya Taylor-Joy), uma cantora da época que luta para se inserir no showbiz do célebre bairro de Soho. Adentrando em um mundo de glamour, brilho e sucesso, ambas são tragadas para um universo vicioso e cruel que se esconde sobre a perigosa fachada da nostalgia.
Durante os dois terços iniciais do filme tudo ocorre de maneira sublime. Amparado por um roteiro afiado, que combina imagens e texto de maneira orgânica e potente, e uma trilha sonora escolhida a dedo, Wright e equipe usam de todo o arsenal de truques que dispõem para nos colocar na pele de Elouise. O cineasta nos faz sentir a diferença entre a Londres contemporânea, desbotada e povoada por pessoas mesquinhas que lutam a todo custo para ter um resquício de identidade; e a Londres dos anos 60, onde tudo se move com a elegância, brilho e charme de uma partida de xadrez com peças de cristais.
Tudo fica ainda mais intenso quando, a partir da metade do 2º ato, todo o deslumbre é usado para virar as expectativas de Elouise, e do público, e jogá-la dentro da sordidez machista do universo de Sandie. Wright e companhia transformam toda a mágica da nostalgia em um espiral diabólico digno de Roman Polanski e Dário Argento para ilustrar os abusos aos quais a cantora foi submetida por seu então agente e namorado Jack (Matt Smith). Algo que expõe, como o próprio diretor relatou na tour press do filme, um sentimento de desilusão e terror com a outrora doce face da nostalgia.
Entretanto, no ato final tanto roteiro, escrito por Wright e pela roteirista Kristy Wilson – Cairnes (1917), quanto direção, que caminhavam afinados, minam a trama. Para o bem ou para o mal, Edgar Wright é, acima de tudo, um showman. Sua abordagem se esforça para fazer tudo respingar no público como um grande circo de horrores em que cada reviravolta é arquitetada para parecer mais operática e perturbadora que a anterior.
Isso tem efeito dúbio. Se na primeira metade funciona para catalisar as descobertas de Elouise, já na 2ª, se torna um imbróglio.
Artifícios começam a se repetir e a perder o efeito, personagens entram em conflito com suas caracterizações e tornam certas revelações ou previsíveis ou apenas confusas. Como é o caso do personagem do veterano Terrence Stamp. Todo o brilhantismo de sua escalação como um stalker[1], algo que remete ao seu papel icônico como o vilão de O Colecionador (1965), é anulado por seu desfecho mal construído. Já o personagem de John (Michael Ajao) é transformado em uma marionete narrativa ao reagir de forma incongruente a eventos que deveriam afastá-lo de Elouise.
À primeira vista, nada disso parece realmente atrapalhar a experiência, já que o ritmo perfeito da condução de Wright sempre sabe como embalar o público. Mas sob uma lupa criteriosa, é cristalino como o filme presta um desserviço para as mulheres da época, pessoas talentosas que foram exploradas, mortas e relegadas ao ostracismo histórico, que supostamente tenta homenagear.
A incessante busca de criar suspense à base de choques e estímulos sensoriais destrói gradualmente todo o argumento e esforço do filme para jogar luz sobre práticas machistas e torpes da época que foram encobertas pela idealização que se criou em torno dela.
O filme não chega a ser uma decepção, pois ainda tem méritos suficientes oriundos da inventividade de seu criador para valer a investida. É apenas triste que a mesma inventividade sacrificou a entrega de elenco e equipe por julgar que precisava ganhar ainda mais a atenção do espectador. O que é irônico visto que, desde o começo quando vemos imageticamente toda a paixão de Elouise por sua idealização dos anos 60, já a tinha.