O ano de 1964 é emblemático em um cenário nacional. O começo das mais de duas décadas de ditadura civil-militar reforçava o desejo das autoridades do país de manter uma ordem cuja necessidade era completamente questionável. O conservadorismo tomava conta das ruas e tentava esconder, muitas vezes sem sucesso, a realidade perturbadora e assustadora de um país machucado e preso pelas algemas de um regime autoritário. Nesse mesmo ano, no cinema, nascia o primeiro longa de terror da história do país: ‘À Meia-Noite Levarei Sua Alma’, de José Mojica Marins.
“O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida. O que é a existência? É a continuidade do sangue. O que é o sangue? É a razão da existência”. Assim, o Brasil conhecia Zé do Caixão, um dos personagens mais emblemáticos do terror brasileiro. Interpretado pelo próprio José Mojica Marins, o personagem marcava sua primeira aparição no cinema em 1964, quando ninguém tinha o conhecimento de que sua existência seria praticamente uma lenda, uma figura mitológica tão reconhecida que, mesmo quando alguém não conhece nenhuma das obras em que ele aparece, pelo menos conhece seu nome.
O enredo de “À Meia-Noite Levarei Sua Alma” é o seguinte: Zé do Caixão, homem frio e violento, pretende fazer com que seu sangue continue a correr nas veias da cidade por meio do nascimento de um filho. Tópicos como a virilidade, a violência contra as mulheres e a imoralidade marcam o longa desde o início, trazendo para as telas do cinema um vilão que representa muito do que era repreendido, porém comum para a rotina de um brasileiro.
O filme traz elementos interessantes do terror, com a utilização de uma linguagem mais próxima ao público, como uma introdução que se espera em uma peça de teatro, e uma violência desregrada marcada pela trilha sonora forte e assustadora. É curioso pensar, inclusive, que o terror não seja um gênero tão explorado dentro do cenário do cinema nacional, considerando que seu início foi marcante e notável.
O terror, gênero tão estabelecido no cinema mundial, começou em outros países com a utilização de monstros como vampiros, lobisomens e figuras que ultrapassam os limites da existência humana. Com a obra de José Mojica Marins, o horror brasileiro se iniciava justamente pelo contrário: talvez, o fato de Zé do Caixão ser tão humano seja justamente o que incomoda. No longa, temos o medo sendo representado de diversas maneiras que ultrapassam a simples utilização da violência ou do sobrenatural, já que Zé do Caixão é exatamente aquilo que uma sociedade odiaria: um homem despido da lei e da moral, frio como ninguém e desafiador como poucos.
É interessante observar como a personalidade do personagem é construída desde o início do filme, com sua frieza sendo representada inicialmente com o fato dele comer carne em uma sexta-feira santa, enquanto observa fiéis da Igreja Católica com uma diversão de quem assiste um filme de comédia. Do ponto de vista do terror, é uma excelente maneira de começar uma obra, já que a questão religiosa é explorada em longas até os dias de hoje como determinantes para o caráter de um personagem. Se ele está próximo de Deus, mas principalmente da instituição religiosa, logo é bom. Mas se olha para a religião com desdém, aí está a origem de sua maldade. É fácil perceber, é claro, que esse comentário social não foi uma coincidência para o começo de “À Meia-Noite Levarei Sua Alma”, que é completamente carregado de uma visão social óbvia.
Semente de sua época e fruto do presente e do futuro do cinema brasileiro, José Mojica Marins trouxe para as telas uma história carregada do que era mais condenado na sociedade. Usando um vilão como protagonista, alcançou patamares quase impossíveis de se copiar, mas que podem servir de inspiração para que o gênero do terror cresça cada vez mais nacionalmente. “À Meia-Noite Levarei Sua Alma” mostra que o Brasil precisa do terror tanto quanto precisa de salvação do horror que já assola seu território diariamente.