O filósofo alemão Walter Benjamin afirma, num texto primoroso intitulado O Narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov, escrito em 1935, que ‘os provérbios são as ruínas da tradição’. Se for pensar nos ditos populares, sentenças, rifões e anexins que nos sobraram, é preciso lembrar que, por remontar a tempos imemoriais, cada um deles encerra uma experiência humana, uma forma de viver, toda uma tradição de costumes e vivências. Ao falar do rompimento da tradição – ou, melhor dizendo, da irrupção da modernidade e sua forma de experiência individualizada, personificada no romance, sobre a tradição da oralidade e toda a sua carga de experiências coletivizadas, quando se contavam histórias e mais histórias ao redor do fogo, numa forma de transmissão da experiência humana dos mais velhos aos mais novos –, esse vínculo entre gerações há muito começou a se perder gradativamente. A ponto de se constatar, hoje, um estado de coisas em que o que sobrou foram as memórias, as reminiscências – conforme o próprio Benjamin, aliás, conclui em seu texto, que, em suma, fala sobre o fim da narração.
Isto posto, é de se constatar, portanto, que, quando falece uma pessoa que já chegou no mínimo à casa dos oitenta anos, parte de uma tradição vai-se embora junto com ela.
Todo esse intróito algo seco e um tanto quanto racional para falar de uma perda sem precedentes e completamente incomensurável que aconteceu em minha família na madrugada do último dia 12 de agosto: a morte da minha avó materna Leny Becher Wendler, enquanto dormia na chácara de um casal de tios, próximo a São José dos Pinhais.
A Vó Leny vinha com vários problemas de saúde. Entre internações, idas e vindas entre a casa e o hospital e, por último, entre as residências de alguns dos seus sete filhos – já que a sua, na esquina das ruas Otávio de Carvalho e Henrique Thielen, no Jardim Carvalho, em Ponta Grossa, havia sido vendida –, era perceptível que ela também já vinha morrendo aos poucos por dentro. Pode ter ajudado o fato de que ainda era um desejo acalentado seu voltar à velha casa, construída por meu avô, Leonardo da Rocha Wendler, em 1958; desejo que acabou não sendo cumprido.
Há questão de uns cinco anos, mais ou menos, a Vó Leny, talvez cansada das misérias do mundo, resolveu que queria morrer. Tanto fez que chegou a ser internada na Santa Casa de Misericórdia. Aninhou-se na cama de um quarto do hospital e decidiu que iria se despedir de todo mundo, um por um. Pediu que lhe vestissem um conjunto de cor vinho, um par de sapatos, e se fechou para o mundo. Claro, não morreu. Continuou vivinha da silva, mesmo com os problemas (crescentes) de saúde.
Aliás, esse era um dos pontos altos da Vó Leny. Nos últimos tempos, ela havia perdido quase que totalmente a mobilidade das pernas, só era movimentada em uma cadeira de rodas, e não tinha mais coordenação sobre suas funções fisiológicas. Praticamente não via quase nada e, para conversar com ela, era preciso chegar bem perto do seu ouvido. Mas se alimentava sozinha e, mais que tudo, mantinha uma lucidez de dar inveja a qualquer neto ou bisneto fedelho seu. Ria de todos e de si mesma – até mesmo de sua ‘quase-morte’, motivo de muitas risadas e galhofas entre a família durante muito tempo. Esse espírito jovial a manteve antenada neste mundo do qual já sentia um pouco de tédio. A Vó Leny contava piada e fazia blague com qualquer assunto que lhe aparecesse pela frente, sem pestanejar, do alto da sua autoridade de matriarca.
Pois bem. Depois de uma convivência às vezes próxima, outras distante, incluindo até mesmo algumas discussões entre eu e ela, há alguns anos deu-me o chamado ‘estalo de Vieira’. Cheguei à conclusão de que eu era um piá de bosta e que, não obstante ser o mais velho dos netos, faltava-me o discernimento de que o caminho natural de um ser humano que se preze, que quer fazer jus a esse título, era me mancar. O que eu mais tinha a fazer, portanto, era respeitá-la mais ainda e procurar privar de sua presença em qualquer mínimo tempo de que dispusesse. Nos últimos anos, então, o que fiz foi me aproximar cada vez mais da Vó Leny. Olhava para a minha filha, Beatriz e, com o desejo de que ela pudesse conviver o maior tempo possível com a sua Bisa, sempre que podia a levava junto nas visitas à Vó Leny, e também a minha mulher, Ligiane.
Nos últimos anos, a Vó Leny me pedia para que eu tocasse violão e cantasse para ela. O que fazia com enorme prazer e devoção. Carregava meu violão estropiado e uma maleta com diversos papéis com letras cifradas de valsas antigas, Luar do Sertão, Cuitelinho, a Moda da Mula Preta, os sambas do Adoniram Barbosa, Vide Vida Marvada, entre tantas. Muitas eu sei de cabeça; outras, a minha incompetente memória já não ajuda; por isso a necessidade das letras cifradas. Todas essas músicas faziam a Vó Leny sorrir, cantar e lembrar-se de coisas da sua infância e juventude. Ela ficava com o olhar perdido, às vezes fechado, mas com certeza com alguma memória a lhe percorrer a mente. Nunca perguntei do que ela se lembrava, mas todos esses momentos foram, para mim, valiosos. Espero que para ela também.
Se eu consegui evoluir ao menos um pouquinho como ser humano, por meio da minha relação com a Vó Leny, eu não sei. Só o tempo irá dizer isso. Se eu consegui lhe proporcionar alguns momentos de alegria, suspeito que, algumas vezes, sim. Mas do que tenho certeza é: eu tentei.
Uma reflexão já há tempos me acompanha: o que sobra de uma pessoa com 88 anos – que fez de tudo na vida, criou sete filhos, passou pelos mais diversos tipos de problemas de saúde, presenciou brigas familiares e que, nos últimos tempos, vinha assistindo a uma espécie de desconstrução da própria vida, com o rateio da mais singela toalhinha de crochê até móveis e objetos de uso pessoal? O que lhe resta a não ser as suas memórias, as suas reminiscências, a sua história de vida? Que se dane um momento ou outro em que ela foi intransigente ou teve qualquer outro sentimento não muito agradável em relação a alguém. Não é de se aceitar que uma pessoa, nas suas condições, tem mais é o direito de mandar às favas tudo e todos? O que sobra de uma pessoa assim senão a sua valiosíssima presença entre nós?
Presença com a qual que eu tive o privilégio de contar no dia 16 de julho passado, um sábado, na casa da minha mãe, também na Henrique Thielen. Foi nesse dia que a Vó Leny achou por bem distribuir os seus últimos pertences – muito provavelmente os mais íntimos – entre o nosso núcleo familiar. Acabei ganhando dela uma leiteira com apito; uma concha incrementada com uma escumadeira, para pegar da panela somente o caldo ou os grãos de feijão; algumas latas (já que faço coleção delas); um martelo para amaciar carne; uma queijeira; uma toalha de mesa redonda, entre outros objetos. Senti-me ao mesmo tempo feliz por ganhar os presentes e triste por causa do seu gesto. Pensava comigo: ‘Como pode uma pessoa se desprender de suas coisas a esse ponto, logo ela que sempre teve o maior zelo pelos seus pertences?’. Até cheguei a me perguntar se aquele dia não seria o último que eu teria na sua presença.
Infelizmente, acabou sendo. Pois não é que, mesmo com um quadro no qual todos esperávamos pela sua morte a qualquer momento, a Vó Leny nos pregou uma peça? Sem dar sinais do que estava para acontecer, ela foi dormir normalmente na noite de quinta-feira, 11, conforme relatou meu tio Osório. Às 7h45 do dia seguinte, quando ele e minha tia, Lena, foram acordá-la para tomar alguns medicamentos, a Vó Leny já havia falecido. Segundo um médico de Curitiba, a hora mais provável da sua morte foi entre quatro e cinco da madrugada.
Ou seja, após incontáveis percalços, a Vó Leny teve a graça de morrer dormindo. Assim, sem mais nem menos, deu seu último suspiro. Um tipo de morte que todos desejamos. Porque desprovida da dor final da existência. Porque suave. Porque singela. Porque poética.
O escritor português José Saramago dizia que a diferença entre viver e morrer é a mesma de estar e não estar no mundo. A Vó Leny – ou Voiny, como eu a chamava quando criança, e que durante algum tempo foi seu apelido para mim, meu irmão, Dilso, minhas irmãs, Celinha e Nizi, e alguns primos – não está mais no mundo. Triste constatação a que temos que nos acostumar, queiramos ou não.
O que me resta, neste momento de muita dor, é pedir a sua bênção, Vó Leny. Ou, simplesmente: bença, Voiny. Descanse em paz.
Do meu lado, vou tentar manter viva a sua imagem – sorrindo; fazendo pilhéria; cantando; me abraçando; me beijando; me desejando boa-sorte; me dizendo ‘crie juízo’, e eu respondendo ‘tentei, mas tive que colocar quemicetina na água dele, mas morreu todo encorujado…’; abençoando minha mulher, Ligiane, e minha filhinha, Beatriz; dando um beijo de estralar no rostinho dela; me puxando a orelha para não chamá-la de Bia ou de Bibi, e sim de Beatriz. Vou tentar, enfim, manter viva um pouco da sua tradição, um pouco da nossa história familiar. Uma tradição tão bem representada pela Voiny durante sua difícil, mas bela, vida.
Vou tentar fazer a minha parte, disso a senhora pode ter certeza. É o mínimo que eu posso fazer.
Fique com Deus, Voiny, e vele pela sua família. Nós precisamos.
Por Helcio Kovaleski