Por Cultura Plural
Fabio Anibal Goiris*
O escritor Luís Fernando Verissimo morreu aos 88 anos em Porto Alegre em decorrência de complicações de uma pneumonia. Criou um estilo (e uma linguagem literária) inconfundível: a do cronista urbano que intercala e combina humor, sátira e posições ideológicas de esquerda. Ao captar, com suas crônicas afiadas, o espirito dos brasileiros, mostrou que um grande escritor, para ter sucesso, neste caso estrondoso e duradouro, não precisa nem mesmo falar muito (ele era modesto, tímido e retraído) e tampouco de propaganda da mídia.
Os textos escritos para jornais (como O Globo e a Folha de S. Paulo) e os seus célebres livros (publicados por várias editoras) estavam, ambos, entre os mais lidos do Brasil. E isto ocorreu durante mais de 40 anos. Por exemplo, ‘O Analista de Bagé’, publicado em 1981 pela LP&M, já ultrapassou 40 edições. Isto sem mencionar outros dois célebres personagens de seus livros (de mesmo título): ‘Ed Mort’ (o detetive) e ‘A velhinha de Taubaté’ (‘a última brasileira que ainda acredita no governo’). O seu livro ‘Comedias da Vida Privada’, de 1994, se transformou numa famosa e divertida série de televisão produzida pela TV Globo e exibida entre 1995 e 1997.
Se falar em genética é obrigatório (para explicar o sucesso), então, cabe fazer referência ao seu pai Erico Verissimo (1905-1975). Escritor de imenso público leitor, Erico levou o Rio Grande do Sul para todo o mundo e especialmente aos Estados Unidos, onde se mudou com a família para lecionar literatura brasileira na Universidade da Califórnia, em Berkeley. O pequeno Luís Fernando também o acompanhou, mergulhando, então, no inglês num nível profundo. O famoso livro de Erico Verissimo ‘O tempo e o vento’ (1949), é dividido num total de sete volumes e retrata a saga épica relativa à formação do Rio Grande do Sul.
A vivencia nos Estados Unidos de Luís Fernando Verissimo, especialmente na década de 1950, certamente o colocou em contato com ideias e com autores de um estilo literário que marcaria toda sua obra: a sátira e o humor. Nesse contexto, cabe lembrar que o livro de Freud “Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente”, publicado em 1905, veio para incorporar no universo da escrita (e do cinema) uma espécie de entendimento psicanalítico da vida humana (especialmente aquela que utiliza o humor, o chiste, a piada). Como resultado de sua experiencia cultural-psicanalítica, Verissimo publicou em 1985 o livro “A mãe de Freud”, uma coleção de contos satíricos.
Nesta perspectiva, de acordo com Sigmund Freud, aquilo que se denomina de chistes (expressão muito utilizada no idioma espanhol) responderia por tudo o que vem a significar o que é cômico. De acordo com a psicanálise, através do humor, o sujeito conseguiria manifestar muitas das suas tendências inconscientes. Ou seja, as diferentes ações (e falas) humanas podem carregar muito mais do que apenas uma piada. Disto resultaria que os chamados chistes revelam desejos inconscientes e funcionam como uma via de escape para pensamentos que normalmente seriam reprimidos.
Nesta linha, Woody Allen, a partir da década de 1960, inaugurou um tipo de humor que é retratado por muitos como ‘humor freudiano’, em razão de focalizar temas psicanalíticos próprios da existência humana como narcisismo, ansiedade e pessimismo. Woody Allen explora, portanto, uma visão caricatural e inteligente da realidade, especialmente em seus filmes: “Noivo neurótico. Noiva Nervosa”, “Manhattan” e “A última noite de Boris Grushenko”.
Luís Frenando Verissimo envereda nessa linha de Woody Allen, não propriamente no cinema, mas na literatura. O livro “O analista de Bagé”, da década de 80, é um claro apelo, embora satírico, à teoria freudiana. O analista dos pampas se diz freudiano ortodoxo (“mais ortodoxo que rótulo de Maisena”). Além disso, o analista de Bagé possui técnicas polêmicas como o ‘joelhaço’ e chegou a trocar o divã pelo pelego e o vivente é obrigado a deitar por estar incluído no preço.
A seguir, uma breve exposição de “O Analista de Bagé”, de Luís Fernando Verissimo, em que uma consulta reflete as fragilidades humanas, o superego e a “ortodoxia” psicanalítica:
“Pues, diz que o divã no consultório do analista de Bagé é forrado com um pelego. Ele recebe os pacientes de bombacha e pé no chão.
— Buenas. Vá entrando e se abanque, índio velho.
— O senhor quer que eu deite logo no divã?
— Bom, se o amigo quiser dançar uma marca, antes, esteja a gosto. Mas eu prefiro ver o vivente estendido e charlando que nem china da fronteira…
— Certo, certo. Eu…
— Aceita um mate?
— Um quê? Ah, não. Obrigado.
— Pos desembucha.
— Antes, eu queria saber. O senhor é freudiano?
— Sou e sustento. Mais ortodoxo que reclame de xarope.
— Certo. Bem. Acho que o meu problema é com a minha mãe
— Complexo de Édipo. Dá mais que pereba em moleque.
Luís Fernando Verissimo incorporou também o humor de conotação popular, completamente diferente de Woody Allen (cuja obra se concentra em personagens neuróticos da classe média alta e da pequena burguesia norte-americana). Ao contrário, Verissimo, que não deve nada a Woody, navega pelo popular, razão pela qual é chamado de o cronista do cotidiano. Não é por acaso que ele dizia que “no Brasil o fundo do poço é apenas uma etapa”. Ninguém fazia esse tipo de humor na seara tupiniquim.
E eis que, em 1973, surge um pequeno, mas antológico texto humorístico: o popular. Notável figura urbana, O popular é o cidadão brasileiro, por vezes sem domicilio certo, tendo por característica estar sempre à margem dos grandes eventos. Com O popular (aquele indivíduo que, sempre com um embrulho embaixo do braço, ajuda em acidentes, observa incêndios e deambula discretamente pelas alamedas), Verissimo demonstrou habilidade para o humor refinado, perspicácia para desvendar a natureza humana e senso crítico para entender o chiste freudiano (isto é, para sugerir que o inconsciente, mais propriamente o id, teima em enveredar por uma espécie de sublimação, como mecanismo de defesa). Eis uma pequena amostra do texto O popular:
“O Popular não tem opinião sobre as coisas. Quando o rádio ou a televisão resolvem ouvir “a opinião de um popular” na rua, sempre se enganam. O Popular nunca é o entrevistado, é o sujeito que está atrás do entrevistado, olhando para a câmara.”
É possível que a resposta definitiva para a importância do chamado ‘humor freudiano’ desenvolvido por Luís Fernando Verissimo esteja na interpretação de Herbert Marcuse. Para o filósofo alemão, o chiste (ou piada), na literatura ou na vida, funciona como um veículo para a expressão de desejos inconscientes reprimidos. Marcuse diz que o humor pode ser entendido como uma via segura de expressão e alivio face à pressão psicológica.
Nesta perspectiva, transcreve-se um trecho da obra de Luís Fernando Verissimo, em que um vivente consulta com o analista:
“O analista de Bagé tira uma palha de trás da orelha e começa a enrolar um cigarro. — Tô te ouvindo — diz. — É uma coisa existencial, entende? — .
Começo a pensar, assim, na fìnitude humana em contraste com o infinito cósmico…
— Mas tu é mais complicado que receita de creme Assis Brasil.
— O Freud não me diria isso.
— O que o Freud diria tu não ia entender mesmo. Ou tu sabe alemão?”
* O autor é professor da UEPG. Graduado em Direito pelo Cescage, mestre em Ciência Politica pela UFRGS. Realizou curso de Sociologia Política na Universidade de Londres. É autor do livro ‘Estado e política. A história de Ponta Grossa, PR’.