Por Cultura Plural
Foto: Acervo Cultura PluralPor Emanuely Almeida
O documentário Agô — Minha Cidade tem Saravá foi produzido por Juliana Gelbcke, Felipe Soares e Guilherme Marcondes, sendo uma das grandes obras sobre as religiões afro-brasileiras em Ponta Grossa, sobretudo a Umbanda e o Candomblé. O documentário possui 31 minutos e foi lançado em 2021, no Canal Historiô, com apoio da Fundação Municipal de Cultura da cidade. O projeto parte de uma necessidade histórica e cultural de dar visibilidade a essas tradições religiosas frequentemente invisibilizadas ou estigmatizadas. O próprio título já anuncia um pedido de “licença” — “agô”, palavra de origem iorubá para abordar com respeito um tema delicado e ainda marginalizado no imaginário social brasileiro.
É raro ver produções na nossa cidade retratarem com tanta beleza e respeito uma prática religiosa tão oculta. Mesmo tendo sido divulgado há sete anos, no Museu Campos Gerais, o documentário ainda emociona ao relembrar uma obra que marcou os povos de terreiro, dando espaço para a escuta, a fala e a expressão do amor pelas religiões de matriz africana. Embora seja uma produção que transmite profunda emoção e significado, o papel desta crítica é analisá-la com seriedade e respeito, reconhecendo a força do tema e da representação das comunidades de matriz africana.
As Raízes Culturais das Religiões Afro-brasileiras
A cultura brasileira é profundamente marcada por elementos de origem africana, que se manifestam na língua, na arte, na música e, principalmente, na religiosidade. Como aponta Reginaldo Prandi, em seu livro Segredos Guardados — Orixá na Alma Brasileira, essa herança não deriva de uma única matriz, mas de múltiplas tradições trazidas por diferentes povos africanos, que foram conservadas e ressignificadas no Brasil. É nesse caldeirão cultural que surgem as religiões afro-brasileiras, como a Umbanda e o Candomblé, que carregam não apenas rituais, mas cosmovisões distintas do mundo.
A cultura africana diluída na formação da cultura brasileira corresponde a um vasto elenco de itens que abrangem a língua, a culinária, a música e artes diversas, além de valores sociais, representações míticas e concepções religiosas, conservadas não a partir de uma matriz africana única, mas de várias, oriundas de diferentes povos africanos.(PRANDI,Reginaldo,pág 159)
Isso se enfatiza na fala de uma das fontes presentes no documentário, quando José Luiz afirma: “Destruindo o resgate da história do passado, destrói tudo que estamos querendo fazer no presente”. A obra nos convida a refletir sobre um passado de silenciamento e não reconhecimento dessas experiências religiosas como parte da brasilidade. Ao deixar feridas históricas abertas, como a negação da importância das matrizes africanas na formação do país, alimenta-se um presente ainda marcado pela exclusão e pelo preconceito. Em uma nação construída pela diversidade, é preciso repudiar qualquer forma de intolerância que negue o direito do outro existir e expressar sua fé.
Mesmo sendo expressões ricas de identidade, religiosidade e resistência, as religiões afro-brasileiras seguem marginalizadas. A produção aborda esse cenário ao trazer relatos de intolerância religiosa, com denúncias de discriminação e ataques a terreiros. Os casos evidenciam como a intolerância permanece viva no cotidiano e reforçam a urgência de produções como Agô — Minha Cidade tem Saravá, que buscam visibilizar, valorizar e respeitar tradições historicamente silenciadas.
O documentário foi construído, em sua maior parte, a partir de entrevistas com mães e pais de santo, além de outros praticantes das religiões afro-brasileiras. No entanto, em alguns trechos, os produtores recorrem à técnica da locução, recurso que parece surgir da necessidade de contextualizar e situar o espectador na narrativa que está sendo construída. Um exemplo claro disso aparece logo no início da obra, quando o locutor, acompanhado de imagens, explica o sentido da palavra “Agô” e o seu significado, que também dá nome ao documentário. Essa escolha é importante porque facilita a compreensão do público que talvez não conheça a palavra, abrindo o caminho para uma recepção mais respeitosa da história que será contada.
As imagens de apoio reforçam esse cuidado narrativo e aparecem com destaque nos momentos de saudação aos orixás e nos cantos religiosos, elementos centrais nas práticas da Umbanda e do Candomblé. Esses trechos, muitas vezes utilizados nas transições entre os blocos da narrativa, ajudam a manter o ritmo da obra e a imergir o público na atmosfera religiosa e simbólica dessas tradições. Essa foi uma escolha que esperava da obra mesmo antes de assistir, justamente pelo respeito que ela demonstra com o tema que se propõe a retratar.
A linguagem do documentário é direta e sensível, com foco no depoimento dos próprios praticantes. O uso da voz dos entrevistados aproxima o espectador da realidade vivida por essas pessoas, humanizando suas experiências. No entanto, há falhas técnicas perceptíveis, como a falta de identificação clara de fontes, sendo fornecida apenas nos créditos da obra, e o uso recorrente de interjeições como “aham” por parte do entrevistador, que podem quebrar a imersão e o ritmo da narrativa.
Essas tradições compõem o imaginário social brasileiro, estão enraizadas no nosso passado, seguem vivas no presente e continuarão pulsando no futuro. É nesse sentido que a produção afirma, já no título, Minha cidade tem Saravá, deixando claro que essas religiões — tão ricas em beleza, força e resistência — fazem parte da vida cotidiana. Elas estão próximas de nós, mas ainda são invisibilizadas, sem receber o devido respeito e reconhecimento por parte da sociedade.