Por Cultura Plural
Por Fabio Anibal Goiris
Em publicação anterior, “Dalton Trevisan: entre Apolo e Dionisio”, delineou-se um panorama histórico-literário da obra e da figura do escritor que faleceu recentemente aos 99 anos. Desta vez, o foco recai sobre a cidade natal do autor: a capital Curitiba e também sobre a célebre disputa ideológico-literária que agitou o Estado do Paraná no século passado: o ‘paranismo’.
Na década de 1990, Dalton Trevisan escreveu o conto (“Em busca de Curitiba perdida”). Nele, o escritor diz ter viajado por uma Curitiba que está escondida, camuflada e que raramente é citada pelos jornalistas ou escritores. É provável que Dalton tenha se inspirado no livro do romancista francês Marcel Proust: Em Busca do Tempo Perdido (1913) e, mais ainda, na obra do escritor Ítalo Calvino, As cidades invisíveis (1972), em que o autor italiano relaciona a memória da cidade como diretamente ligada aos feitos humanos. Dalton não se refere, portanto, à ‘Curitiba para inglês ver’, mas aponta para uma cidade de ruas de barro com mil e uma janeleiras e seus muitos cafetões. Dalton Trevisan escreve que a Curitiba que ele viaja é a do relógio da Praça Osorio, dos sinos da igreja dos polacos, onde o crepúsculo vem nas asas de um morcego e do bebedouro da pracinha da Ordem, onde os cavalos de sonho dos piás vão beber água. Dalton conclui: “Curitiba sem pinheiro ou céu azul, pelo que vosmecê é – província, cárcere, lar -, esta Curitiba, e não a outra para inglês ver, com amor eu viajo, viajo, viajo”.
O parágrafo anterior parece demonstrar que Dalton Trevisan vinha coletando minuciosamente dados históricos, nas suas andanças pelas ruas (e pelas letras) da cidade. O resultado é a crença de que existe uma outra Curitiba. Discordando talvez de Leon Tolstói, o grande mestre do realismo russo, que dizia que aquele que escreve sobre sua aldeia se torna universal, Trevisan parece querer mostrar que não basta escrever sobre a aldeia, é necessário incluir a dimensão nebulosa e intricada desse universo, sempre repleto de contrastes, carecimentos, absurdos e desvios.
Nesse contexto, Dalton Trevisan alude constantemente em suas obras ao rio Belém (que nasce e deságua no município de Curitiba e faz parte do patrimônio natural e histórico da cidade). Tolstói (Guerra e Paz, 1865) descreveria o rio Belém pela sua importância social e pela vida da nobreza versus a vida cotidiana dos servos. Trevisan, por seu lado, apresentou uma margem sinuosa e enlodaçada do rio Belém e, sobretudo, delineou as vidas esquecidas (ou vidas gracilianamente secas). Assim, no conto ‘Cemitério de Elefantes’ (de 1964), Dalton Trevisan escreve: “Á margem esquerda do rio Belém, no fundo do mercado de peixes, ergue-se o velho ingazeiro – ali os bêbados são felizes. Curitiba os considera animais sagrados, provê às suas necessidades de cachaça e pirão. No trivial contentam-se com as sobras do mercado”. O autor descreve ainda o cotidiano daqueles “paquidermes do mangue”: “Eles que suportam o delírio, a peste, o fel na língua, o mormaço, as câimbras de sangue, berram de ódio contra os pardais, que se aninham entre as folhas e, antes de dormir, lhes cospem na cabeça – o seu pipiar irrequieto envenena a modorra”. Parece não haver mais dúvida de que existe mesmo uma Curitiba perdida.
Mas, a outra Curitiba, aquela que está perdida, não se reduz a ingazeiros, mangues, bêbados e pardais. Ela se infiltra na sociologia do cotidiano, no modus vivendi dos narcisistas, cafetões, sovinas, exibidos e onzenários. Para este amplo conjunto Dalton Trevisan reservou um parágrafo, extraído do seu conto Quem tem medo de vampiro? (1994): “Mais de oitenta palavras não tem o seu pobre vocabulário. O ritmo da frase tão monótona quanto o único tema, não é binário nem ternário, simplesmente primário. Reduzida ao sujeito sem objeto, carece até de predicado – todos os predicados”. Esta perspectiva, exploratória, do ponto de vista antropológico (próprio dos contos de costumes), talvez tenha originado, na obra de Dalton Trevisan, a célebre expressão curitiboca, que o autor utiliza no seu texto “Curitiba revisitada” (1994): “Não me façam rir curitibocas…”. E o autor continua: “… povo felicíssimo sem rosto, sem direção, sem pão… dessa Curitiba não me ufano… não Curitiba não é uma festa… os dias da ira nas ruas vêm aí…”.
É nestes casos que a obra de Dalton Trevisan passa a ser interpretada como um ato xamânico, que induz a uma espécie de assombração. Mas é uma aparição espectral histórica que, em vez de assustar o leitor, o desperta, o encoraja e o acorçoa. Esse leitor começa a se interessar pela Curitiba perdida. Percebe a necessidade de se vasculhar as entranhas da metrópole (Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, fundada pelos bandeirantes no século XVII). Aqui poderão ser encontrados simbolismos, identidades e alegorias: a araucária angustifólia (e seu filho, o pinhão), a erva-mate, a onça parda e a gralha azul. Só esta tentativa de busca ancestral já deve ter deixado Dalton Trevisan serenado e em paz e, aos vivos, dado a oportunidade de que se escreva alguma dissertação de mestrado na esteira da antropologia crítica.
Outro ato xamânico que surge da obra de Dalton é a crítica ao paranismo. É por esta fenda literário-ideológica que emerge o iceberg do paranismo. Dalton Trevisan se opôs a esta corrente. Ao que parece, Dalton lutava para que o paranismo não se torne natural (como hoje estão naturalizando o fascismo), num universo onde o Paraná explodia em ideias, ideologias, metáforas e ilusões, especialmente aquelas que incluem a alteridade e o igualitarismo.
O paranismo teve início em torno de 1853, após a emancipação do Paraná do Estado de São Paulo, mas somente se tornou popular a partir de 1927, mediante o chamado Manifesto paranista. Foi, portanto, um movimento de construção identitária do Paraná, com forte caráter regionalista. Numa mensagem do Centro Paranista se pode ler o seguinte: “Paranismo é o espirito novo, de elance e exaltação, idealizador de um Paraná maior e melhor pelo trabalho, pela ordem, pelo progresso, pela bondade, pela justiça, pela cultura, pela civilização. É o ambiente de paz e de solidariedade, o brilho e a altura dos ideais, as realizações superiores da inteligência e dos sentimentos”.
Este Manifesto era claramente positivista (afeito, portanto, às ideias do francês Auguste Comte), em razão de exaltar a ordem e o progresso além das realizações “superiores” do liberalismo utilitarista. Dalton Trevisan já falava da existência de uma sessão pública realizada em Curitiba por onze positivistas (Canção do Exilio, 1988). Sobre o Paranismo, Dalton diria: “Fortalece-se certa mentalidade reacionária (disfarçada pelo lindo adjetivo de “paranista”), que, em nome de santas tradições, amputou as mãos e furou os olhos dos jovens artistas.”
Alguns autores como Veiga de Camargo (2007) assinalam que uma das primeiras críticas ao paranismo foi o seu caráter eurocêntrico e, mais ainda, a sua tendencia de excluir os negros (‘branqueamento’) e também os indígenas. Isto não era estranho às concepções positivistas. Não obstante, cabe expressar que o paranismo está redivivo. O então prefeito Rafael Greca inaugurou, em 2021, o Memorial Paranista no Parque São Lourenço. O espaço reúne obras de João Turin, naquele que é um dos maiores – se não o maior – jardim de esculturas externas da América Latina.
Dalton Trevisan, em vários dos seus contos, criticava o beletrismo paranista (entendido no seu sentido pejorativo como uma literatura considerada amadora, superficial ou de menor qualidade). Este movimento literário paranista incorporaria, em sua primeira fase, o historiador Romário Martins (1874-1948) e o advogado e jornalista Emiliano Perneta (1866-1921). Não é por acaso que Dalton Trevisan escreve, no conto Mistérios de Curitiba, de 1968: “Não viajo todas as Curitibas, a de Emiliano, onde o pinheiro é uma taça de luz; de Alberto de Oliveira do céu azulíssimo; a de Romário Martins em que o índio caraíba puro bate a matraca, barquilhas duas por um tostão, essa Curitiba merdosa não é a que viajo”.
Da mesma forma, no conto Quem tem medo de vampiro? (1994), Dalton Trevisan se refere novamente ao paranismo (que naquele momento já incluía o campo das artes). O autor já escrevera, na antiga revista Joaquim (1946), que a guinada do paranismo para as artes restringiu e procrastinou as perspectivas da produção literária no Paraná. Trevisan escreve: “Na fúria do ressentido, busca atingir as nossas glorias sacrossantas: Emiliano, a poesia, Mossurunga (maestro Bento Mossurunga, autor da música do Hino do Paraná), a música, De Bona (Theodoro De Bona, pintor e escritor paranaense), a pintura. Tudo em vão: a grotesca imagem do vampiro já desvanecida aos raios fúlgidos da história”.
Dalton Trevisan deixou uma última mensagem: a sua visão áspera, mordaz e satírica do provincianismo paranaense, contra o qual se insurgiu. A luta contra o provincianismo era também uma batalha frontal contra o simbolismo na literatura (aquela corrente marcada pelo pessimismo e a visão subjetiva da realidade). O simbolismo, sustentado na linguagem poética, vinha impedindo o surgimento da literatura modernista. Quando da morte do “Príncipe dos poetas do Paraná”, Dalton escreveu: “Emiliano Perneta foi uma vítima da província, em vida e na morte. Em vida, a província não permitiu que ele fosse o grande poeta que poderia ser, e, na morte, o cultua como sendo o grande poeta que não foi”.
* O autor é professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Graduado em Direito. Mestre em Ciência Política pela UFRGS. Realizou curso de Sociologia Política na Universidade de Londres. É autor do livro “Estado e Política: A história de Ponta Grossa, PR”.