Por Cultura Plural
Por Fabio Anibal Goiris
Corria a década de 1940 e o curitibano Dalton Trevisan, então com 21 anos de idade, decide participar da fundação da revista Joaquim (1946). Foi uma verdadeira primavera cultural com raízes na capital paranaense. Não era para menos: a revista reuniu grandes nomes da literatura e da arte: Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Di Cavalcanti e Candido Portinari. A publicação tinha como objetivo desafiar o conservadorismo da época. O parnasianismo, com grande pompa, vinha dominando a literatura mundial. Afinal, o parnasianismo se aliou ao positivismo do francês de Auguste Comte, para se apresentar como “cientifica”. O parnasianismo defendia uma literatura (e sobretudo uma poesia) perfeita, bela e refinada.
Contrariamente, Dalton Trevisan já tinha em mente uma prosa transgressora, sarcástica, nacionalista, de ficção e, paradoxalmente, com certo viés realista (como no conto ‘Cemitério de elefantes’, de 1964). É possível pensar que a Semana de Arte Moderna de 1922 tenha colaborado para criar em Dalton Trevisan um espirito literário que procurava explorar a brasilidade e valorizar os fenómenos antropológicos e psicológicos que emergem primariamente a partir da terra das palmeiras (Pindorama, onde habitavam os tupinambás) como elemento básico de inspiração ancestral e cultural. Afinal, Osvald de Andrade, lá pelos anos vinte, apelando para a necessidade de uma antropofagia (que devorasse as entranhas da cultura europeia), ensinava no ‘Manifesto antropofágico’ a pertinência da célebre metáfora hamletiana: “Tupi, or not Tupi that is the question”.
Deixando para trás a notável revista Joaquim (uma plataforma de experimentação daquilo que seria seu estilo na literatura), Dalton Trevisan iniciou sua caminhada pelo atalho literário da ausência de formalismo, da ruptura com o academicismo de viés parnasiano e de uma leve inclinação para o surrealismo e o expressionismo (presentes nas vanguardas artísticas europeias). Foi assim que Dalton Trevisan, esculpindo suas prosas minimalistas, ajudou na consolidação de Curitiba como metrópole da modernidade artística brasileira.
A carreira literária de Dalton Trevisan decolou de vez em 1959, com o lançamento de “Novelas Nada Exemplares”, que lhe rendeu o primeiro de seus quatro prêmios Jabuti (1960, 1965, 1995 e 2011). Dois anos depois, veio o clássico “O Vampiro de Curitiba” (1965), obra que lhe garantiu o apelido pelo qual ficou conhecido. É possível fazer uma digressão, não necessariamente alinhada à verdade, para dizer que as “Novelas Nada Exemplares”, escritas por Dalton em 1959, podem ter sua inspiração em Miguel de Cervantes (autor do clássico ‘Don Quijote de la Mancha’). As “Novelas Ejemplares”, são contos curtos escritos em Madrid por Cervantes (entre 1590 e 1612) e que tinham um caráter didático e moral (ou moralista) como Riconete y Cortadillo e El licenciado Vidriera, que emergem a partir de enredos românticos, típicos dos contos de cavalaria. Com tamanha inspiração, Dalton Trevisan, invertendo sabiamente a lógica “moralista” de Cervantes, encontrou o caminho do estrondoso sucesso.
Com a escrita sempre objetiva e abreviada, Trevisan aborda temas como ansiedade, culpa, pecado, virgindade, traição, desejo, patriarcado, mas, sempre mantendo um diálogo subliminar com a religiosidade e, paradoxalmente, com o sarcasmo. Já se dizia que Dalton é irmão de Caim e primo distante de Abel. A impressão que fica é que Dalton parece querer embaralhar seus personagens usando amostras da psicanálise inconsciente de Freud e sobretudo daqueles arquétipos ou máscaras descritas por Jung. Não obstante, em duas obras seminais, Dalton Trevisan escreve com uma transparência apolínea e quase juvenil. O autor se afasta das neuroses dionisíacas dos seus personagens. Isto ocorre em “O ciclista” e no conto breve “Uma vela para Dario”.
“O Ciclista” retrata a corajosa e veloz história de um jovem que desafia a urbanização acelerada da metrópole em cima de uma bicicleta (num tempo em que as bicicletas tinham campainha). Se trata de um conto ficcional, despretensioso e genial que apareceu na Gazeta do Povo, nos anos 1950. Não custa retratar aqui, fielmente, “O ciclista”, como amostra da prodigiosa escrita de Dalton:
Curvado no guidão lá vai ele numa chispa. Na esquina dá com o sinal vermelho e não se perturba – levanta voo bem na cara do guarda crucificado. No labirinto urbano persegue a morte com o trim-trim da campainha: entrega sem derreter sorvete a domicílio.
É sua lâmpada de Aladino a bicicleta e, ao sentar-se no selim, liberta o gênio acorrentado ao pedal. Indefeso homem, frágil máquina, arremete impávido colosso, desvia de fininho o poste e o caminhão; o ciclista por muito favor derrubou o boné.
Atropela gentilmente e, vespa furiosa que morde, ei-lo defunto ao perder o ferrão. Guerreiros inimigos trituram com chio de pneus o seu diáfano esqueleto. Se não estrebucha ali mesmo, bate o pó da roupa e – uma perna mais curta – foge por entre as nuvens, a bicicleta no ombro.
Opõe o peito magro ao para-choque do ônibus. Salta a poça d’água no asfalto. Num só corpo, touro e toureiro, golpeia ferido o ar nos cornos do guidão.
Ao fim do dia, José guarda no canto da casa o pássaro de viagem. Enfrenta o sono trim-trim a pé e, na primeira esquina, avança pelo céu na contramão, trim-trim.
Já no conto “Uma vela para Dario”, Trevisan oferece aos seus leitores uma amostra da sua preocupação pelo social. Para isso conta a história de um homem da cidade grande que, caminhando apressado pelas ruas, senta, de repente, na calçada. Supõe-se que esteja passando por uma lipotimia e que depois parece ter chegado a óbito. Durante a narrativa Dalton apresenta em sequência vários personagens. Com uma linguagem clara e direta, o narrador faz uma crítica à sociedade (ao lembrar a importância da humanização num universo espectral onde afloram as indiferenças). Vejamos os três primeiros parágrafos deste conto, que é tema recorrente nos vestibulares do Brasil, o que demonstra a impressionante dimensão nacional da obra de Dalton:
Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra a esquina, diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede. Por ela escorrega, senta-se na calçada, ainda úmida de chuva. Descansa na pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca, move os lábios, não se ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de ataque.
Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo apagou. O rapaz de bigode pede aos outros se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe tiram os sapatos, Dario rouqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca.
Dalton Trevisan utiliza sempre uma linguagem popular e concisa. Com essa verve acelerada e popular criou personagens brasileiros que, no entanto, apresentam um arqué universal, como o cafajeste Nelsinho, o vampiro de Curitiba. O professor Seixas Guimarães, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP, se refere às narrativas e personagens de Trevisan para dizer que: “Os sujeitos vampirizados são ventríloquos de discursos prontos, ready-mades (um material literário pronto para uso), enunciadores de frases feitas, colhidas no meio da rua. Mas também não se limitam a isso, pois resta humanidade nos dentes que lhes faltam na boca, no acessório prafrentex e cafona, no desejo de ser alguma coisa que não são e talvez nunca possam ser, o que imprime uma nota pungente e inconfundível às narrativas de Dalton Trevisan”.
Por fim, sobre Dalton Trevisan, autor de mais de 50 livros, vencedor do prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa, se poderia dizer que, longe da festejada grandiloquência que permeia o mundo contemporâneo, o escritor queria passar, suavemente, das suas novelas ‘nada exemplares’, para a prosa simples e, desta, para o diminuto haicai, poema oriental consagrado por Paulo Leminski. Como muitos de seus personagens, Dalton parece ter cumprido seu destino minimalista. Morreu calmamente a seis meses de completar o seu centenário.
* O autor é professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Graduado em Direito, mestre em Ciência Política pela UFRGS. Realizou curso de Sociologia Política na Universidade de Londres. É autor do livro “Estado e Política; A história de Ponta Grossa, PR”.