Por Yuri A.F. Marcinik
O mito de Pocahontas é poderoso em sua moral sobre união e paz na interação entre colonizadores e nativos dos EUA. Um princípio brutalmente destruído após movimentos como a Marcha ao Oeste e as guerras da Secessão e a México-americana – todos do século XIX. Uma espiral de violência que desembocou na criação do estereótipo do indígena bárbaro e indigno de suas riquezas na cultura pop do início do século XX.
Criado envolto nessas sombras caricatas, o cineasta veterano Martin Scorsese decide que, aos 80 anos, é hora de fazer uma mea culpa e meditar sobre a traição do espírito de Pocahontas. Um movimento nobre e valioso, já que ele é uma das poucas pessoas capazes de viabilizar um projeto de 200 milhões de dólares como “Assassinos da Lua das Flores” (2023) para tanto.
O épico de três horas e vinte acompanha Ernest Buckhart (Leonardo Dicaprio), que após retornar da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) vira um peão nas mãos do tio William Hale (Robert DeNiro) que planeja usá-lo para roubar as terras da comunidade indígena Osage, ricas em petróleo. Ao longo de mais de três décadas, Ernest é estraçalhado pelo dilema entre servir ao tio por medo, ou por amor à esposa osage Molly (Lilly Gladstone).
O roteiro de Scorsese e Eric Roth é elegante ao posicionar as raízes da violência como uma questão primordialmente espiritual. Atordoado por guerras recorrentes, seja no velho continente ou no próprio solo, o ímpeto dos brancos parece eternamente atordoado por um stress pós-traumático que só uma cultura de vícios e camaradagem tóxica entre si pode sanar.
Um ímpeto chave na consolidação da cultura patriarcal latifundiária insaciável que se amplia pelo pavor de um novo tempo de escassez e do abandono de um Deus que não é associado a mais nada a não ser à culpa e promessas de punição. Elementos favoritos nas táticas de retaliação de Hale ás desobediências de Ernest.
Essa cadeia disfuncional cresce quando posta à frente ao léxicon religioso Osage; que permeia a natureza, promove uma cultura solidária – até mesmo entre desafetos como mostra o carinho de Molly com o primeiro marido – e que aceita de bom grado lideranças matriarcais. O que salienta um misto recalcado entre inveja dos brancos e admiração por parte do próprio diretor por esse modo de vida. É lindo ver Scorsese usar de toda a sua literatura visual para integrar a espiritualidade dos Osage à dramaturgia com a mesma honestidade e credulidade empregadas em Silêncio (2016).
Hale, por exemplo, seria um ótimo aliado dos nativos já que os admira – talvez até os ame -, se não fosse dominado pela postura de grande “pai branco” que usa para indutar a fome de chacal de sua insegurança e ganâncias. Um grande mérito de DeNiro, que faz do vilão a ilustração máxima da fusão entre as correntes oligarcas do século XIX e a autoindulgência capciosa da ideologia do destino manifesto.
Essa ambivalência rica flui de forma constante entre a caracterização e as atuações. DiCaprio é o destaque pela maneira como maneja o desafio que lhe foi proposto. Com as feições mais rústicas pela idade, o astro consegue algo raro ao agregar carisma, charme e até empatia a um personagem deplorável e fadado à miséria por conta do intelecto tosquiado.
Contudo, é Gladstone que encarna o coração do filme. Compondo Molly como uma dama discreta levada ao extremo por um amor shakespeariano, ela nos cativa ao ir na contramão do colega de cena. Com seus modos contidos e olhos densos, é formidável e desconcertante vê-la compor a personagem com base no amor da personagem por Ernest. Que vai da contradição irresistível entre universos diferentes – a lá Pocahontas – à misericórdia e por fim a morte lenta, dolorosa e contundente no desfecho amargo da história desse casal charmoso… Mas unido em mentiras.
Mas esse tabuleiro de grandes personas do longa sofre com um senso de mal-estar por ter sua dinâmica centrada na perspectiva dos agressores. Em termos dramáticos, é compreensível a escolha de dar a Ernest o protagonismo visto que seu drama e choque pessoal são os mais estrondosos dentro da trama; assim como a decisão de encaixar a trama nos moldes do gênero favorito de Scorsese, o drama criminal. Afinal, a sequência de assassinatos e roubos é o grande motor de tudo.
Todavia, além dessa sensação de familiaridade pregressa diluir a novidade, há um gosto amargo que se destaca do já pesaroso e indigesto tom da história quando vemos os Osage limitados ao papel de vítimas na narrativa. O enquadramento é proposital e serve de forma pungente ao discurso do filme – cristalizado na aparição do próprio diretor no epílogo. Mas nem por isso deixa de fazer com que a experiência e seu efeito sejam restritos à parcela branca da audiência, única a quem se espera que tome parte no reconhecimento da culpa histórica.
Uma restrição abraçada na trilha sonora do parceiro de longa data do diretor, o finado Robbie Robertson, que cria uma harmonia predatória entre os instrumentos. Os elétricos – herança da modernidade branca – frequentemente irrompem se sobrepondo de forma distorcida sobre os de percussão e sopro indígenas, mesmo os últimos sendo os que conduzem a melodia e o ritmo. Uma clara alusão à situação dos Osage, donos das grandes fortunas, mas atados à lei e tirania dos brancos.
Com um balanço artístico de tantos profissionais dedicados à visão de Scorsese, o filme cria para si uma condição interessante. Se por um lado o reconhecimento do privilégio branco é uma necessidade para fomentar a descentralização desse grupo do monopólio dos espaços de voz; é valioso que haja um reconhecimento e valorização desses grandes esforços de mea culpa enquanto combustíveis do efeito dominó de conscientização.
Levando em conta a relevância que o filme trouxe a esse episódio, antes hermético dentro da bibliografia histórica estadunidense, fica claro que, tão importante quanto o teor de uma mensagem e seu emissor, é a forma como esta é articulada. Com um artista tão talentoso em seu artesanato e confiado com tantos recursos quanto Socorsese, há poucas causas que não sairiam beneficiadas com a proliferação desse tipo de movimento.