“Ou você morre como herói, ou vive para se tornar o vilão”. A frase de Harvey Dent (Aaron Eckhart) – “O Cavaleiro das Trevas” (2008) – encapsula bem o tom melancólico do último épico de Christopher Nolan, “Oppenheimer” (2023).
No início da década de 1940, J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy) era “o” homem do seu tempo. Alguém moldado por uma vida de visões de um universo oculto aos olhos e destinado a criar a arma que garantiria “uma paz nunca antes vista pela humanidade”- em seus próprios termos. Contudo, com a sucessão dessa profecia, nada mais que vergonha, caos, ansiedade e autofagia restaram ao “pai da bomba atômica”.
Alternando entre episódios chaves ao longo de mais de 40 anos da vida do protagonista, o longa acompanha o físico frente a um julgamento simbólico armado por seus inimigos que recapitula cada erro cometido antes, durante e pós “Projeto Manhatthan”. Iniciativa que culminou no lançamento das bombas atômicas nas cidades de Hiroshima e Nagasaki em 1945.
Amparado no molde da tragédia grega de Prometheus, como faz o livro base do filme escrito por Kai Bird e Martin Jay Sherwin, Nolan usa de todas as técnicas subjetivas possíveis para criar um retrato de Oppenheimer como o protagonista certo para a tragédia moral de seu tempo.
A capacidade de abstração, visualização e idealismo do físico o seduzem, bem como ao público, na forma de promessas de uma grandiosidade febril que precisa sair da teoria para ganhar a realidade na primeira oportunidade. Contudo, as dádivas do mundo quântico o cegam para a vulnerabilidade criada por sua ingenuidade, seja na política ou em relacionamentos.
No campo afetivo, isso é cristalino nas mulheres que marcaram sua vida e no trabalho sólido de suas intérpretes – ainda que limitadas pelo ponto de vista da história. Tanto Jean (Florence Pugh) quanto Kitty (Emily Blunt) soam como promessas de maturidade – política, moral ou de carreira – que ao final apenas catalisam a impulsividade e disposições autodestrutivas de Robert.
Em termos profissionais, sua disfuncionalidade social se estende em seu misto de rebeldia e subserviência ao Coronel Groves (Matt Damon) e no desdém fatal para com um de seus mais ardentes algozes, o secretário Lewis Strauss (Robert Downey Jr). Uma mistura que acrescenta tons de euforia, realização, pressão, culpa e muita desconfiança na elaboração das bombas “Fat Boy” e “Little Man”- termos nunca usados no filme.
Com o foco mais nos personagens do que no espetáculo – salvo pelo clímax do segundo ato -, Nolan nos contempla com a beleza e devastação dessa história, encapsulando-a de forma mais subjetiva possível na estrutura e montagem do roteiro. O que nos impele a sentir todo o percurso do esplendor ao pavor do personagem-título.
Amplificado pelo formato IMAX – que oferece uma percepção quase microscópica dos personagens e atores -, o elenco, e principalmente Murphy, transformam o que poderia ser o pesadelo dos intérpretes medíocres no melhor palco de suas vidas.
O ator irlandês não só delimita bem cada estágio da vida do físico, como consegue fazer de seu rosto a bússola de um filme de quase três horas. São tantas micro expressões que sua face utiliza para traduzir o caos de Oppenheimer que, por si só, ele já justificaria o formato gigantesco da filmagem.
Em contraste, a composição do antagonista de Downey Jr – ator ímpar na pele de pessoas submersas no próprio ego-, cria uma oposição a tudo que Murphy constrói. Se um é pedante, obtuso em sua ambição e frieza; o outro é doce em seu idealismo mas dividido pela tortura de cada sinapse de sua mente e pelo ímpeto de trazer à realidade uma música que só ele e os seus conseguem ouvir.
No entanto, o narcisismo os une. A equiparação visual entre um orgasmo e o sucesso do Teste Trinity dá ao último um caráter de pico existencial na vida de Oppenheimer. Um zênite que exterioriza toda sua gana de poder sobre a vida e a morte, unidos na alforria de seu próprio Armagedom de insegurança interna; sentimento expresso na citação do texto do “Bhagavad Gita”: “E então eu me tornei a morte, a destruidora de mundos”. Uma grandiosidade que é contraposta a de um adversário igualmente vaidoso, porém desprovido de qualquer senso de realização, munido apenas de ganância e inveja frente à própria mediocridade.
Todavia, o principal embate do filme é menos de Robert contra Strauss, do que consigo mesmo. Caminhando do sonho febril da juventude à tormenta da culpa na velhice, sua jornada abraça a autofagia icônica do seu personagem histórico através do interrogatório, alegoria direta aos corvos do mito grego.
Um processo excruciante de se acompanhar, no bom sentido, que se torna melancólico através das rimas entre os primeiros e últimos planos da projeção e da trilha de Ludwig Goransson. Um trabalho preciso no uso de arranjos diferentes para a mesma melodia que sedimenta o caráter de benção/maldição tanto das capacidades quanto dos sonhos de Oppenheimer.
Evitando crucificar de antemão ou eximir criminosamente a culpa do protagonista, Nolan opta pela empatia para salientar a diferença mordaz entre genialidade e sabedoria. A sangue frio, as consequências dessa jornada definem Robert como um monstro engolido pela culpa, mas os brilhantes olhos azuis de Murphy nos lembram que ele foi, no fim, alguém com um sonho de verão em um inverno da barbárie humana.