Por Cultura Plural
Por Victor Gabriel Schinato
Lançada na Netflix no final de junho, a adaptação dos quadrinhos “Nimona” é o fruto de uma grande ironia. O filme, que narra uma história que subverte a jornada do herói, passou por um verdadeiro arco de superação.
O projeto é filho da extinta Blue Sky Studios, empresa responsável pela criação de obras clássicas das animações como “Era do Gelo” e “Rio”, e foi pego no fogo cruzado do fechamento do estúdio. Com o encerramento da Blue Sky por conta de questões financeiras decorrentes da pandemia, “Nimona” foi engavetado e teria sido esquecido, se não fosse pela Annapurna Pictures, estúdio que salvou o filme e continuou o trabalho de onde havia sido encerrado.
A história acompanha Ballister Boldheart e Nimona na busca pela inocência. O primeiro cavaleiro plebeu do reino, Ballister, é acusado injustamente de um crime que abala todas as fundações do reino, e a adolescente Nimona surge como a figura que se dispõe a auxiliar em tudo, tudo mesmo. A honra e bondade de Ballister, que só quer limpar seu nome, é comicamente contrastante com a rebeldia, com toques homicidas, de Nimona. À primeira vista, tal premissa pode se assemelhar a quinhentas outras duplas da cultura pop, formadas por um homem de meia idade cheio de cicatrizes da vida e um adolescente enérgico que faz com que o homem mude sua visão sobre o mundo. Mas, felizmente, a dinâmica entre Nimona e Ballister vai muito além disso.
Logo de início, o projeto expõe seu diferencial sem medo ou rodeios. “Nimona” é, entre tantas outras coisas, uma metáfora sobre a vivência LGBTQIAPN+. A narrativa mostra personagens LGBT. O roteiro é uma grande ode à experiência universal compartilhada por todo LGBT. Ballister vive um relacionamento aquileano. Logo nas primeiras cenas, ele beija Ambrosius, seu parceiro. Nimona não é uma garota, nem um garoto, e é tudo ao mesmo tempo, até um tubarão.
Imagem: Reprodução
A grande jogada do roteiro está aí. Ao tornar sua personagem-título uma metamorfa, temida pelo reino e vilanizada pela história, cada segundo da animação se torna uma mensagem clara que, mesmo sem letras, pode ser lida por qualquer um que esteja disposto a dedicar mais de dois minutos de atenção.
O estilo da animação é único. Tanto na escolha de cores, quanto no traço do desenho, tudo é somado para formar uma viagem de uma hora e quarenta minutos de puro fascínio. Num ano com lançamentos como “Super Mario Bros – o filme” e “Homem-Aranha: através do Aranhaverso”, “Nimona” pode se perder em meio a tantos estilos diversos. Mas, a simplicidade do traço é encantadora e carrega tanto valor em si quanto a dos outros filmes aqui citados.
Os roteiristas foram eficientes em criar a atmosfera de medo de um perigo invisível, apresentando ao espectador todos os rumores que permeiam o passado do reino, para então revelar que a personagem de cabelos rosa personifica todo o mal imaginário. O cenário, ambientado num fantástico mundo que mescla a idade média, castelos e cavaleiros com tecnologia futurista, se assemelha demais ao mundo em que pessoas LGBTQIAPN+ são tratadas como monstros, apenas por existir.
A construção dos personagens é encantadora, tanto sua personalidade individual quanto a dinâmica da dupla principal. Ballister carrega o enredo com o ritmo suave de alguém que aprendeu que é necessário manter a cabeça baixa para sobreviver. Em seus momentos de desenvolvimento, o tom investigativo do filme avança e outros personagens podem florescer.
Mas, o verdadeiro tesouro é, sem sombra de dúvidas, Nimona. A personagem não só rouba a cena, como também leva o filme num malabarismo ágil e compreensivo em cenas de luta inventivas. Quando a personagem não tem forma definida, o único limite é a criatividade dos roteiristas para encontrar diferentes criaturas que se adaptem ao ambiente da ação. A adolescente punk quer ver o sistema pegar fogo, e deseja se aliar a um vilão que possa fazer isso, porém suas motivações vão muito além disso. A cena de flashback no terceiro ato do filme é capaz de trazer lágrimas aos olhos de qualquer um, e torna a rebeldia de Nimona não só compreensível, como também convida quem assiste a se unir ao sentimento.
Com tantos prós, a história conturbada de sua produção, e sua representatividade, “Nimona” é uma obra ímpar que não encontraria um lar em qualquer lugar. É impossível imaginar um filme tão aberto quanto a sua mensagem política no acervo da Disney, que já havia o engavetado. Enquanto a empresa do rato está em seu décimo “primeiro personagem LGBT”, cancela projetos com protagonismo queer, censura suas obras para não perder público, enquanto ganha rios de dinheiro vendendo produtos com um arco-íris, é uma brisa de ar fresco ver um projeto que não tem vergonha de suas cores.
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