Existe um prazer retórico imediato que acompanha as interações do personagem Hangman (Glen Powell) nesta sequência de “Top Gun” (1986). Sendo definido na primeira aparição como arrogante, sorrateiro e egoísta, o personagem tinha tudo para ser o Maverick (Tom Cruise) desse filme, já que os modos soberbos gritam por uma rima narrativa entre ele e uma amalgama entre o que havia de mais pedante no protagonista e em Iceman (Val Kilmer) no filme original. Contudo, a entrada de Rooster (Milles Teller) reverte qualquer expectativa. Ao apresentá-lo de um modo clássico como o herói que para a música ambiente quando entra no saloon, mas fazendo da precaução seu distintivo, o filme indica que os tempos do rebelde mulherengo soberbo da era Reagan se foram para melhor.
Mais de 35 anos após revelar Tom Cruise como uma estrela internacional, a franquia de Don Simpson & Jerry Bruckheimer retorna para contar o último feito do Top Gun Pete “Maverick” Mitchell. Agora do lado de quem ensina, ele deve superar o medo, o orgulho e o passado para fazer as pazes com Rooster, filho de seu grande e falecido amigo Goose (Anthony Edwards).
A cena no bar de Penny (Jennifer Connely), que introduz o novo séquito de pilotos, é majestosa em sua simplicidade. Apresentando conflitos, personagens e o próprio drama da obra de forma tão suave e certeira, ela se torna – mesmo sendo de ligação e sem nenhuma “ação” – uma síntese da qualidade do texto e da edição do longa.
A precisão que script, montagem, direção e cinematografia operam cria uma falsa sensação de simplicidade, afinal, a trama não parece das mais originais ou complicada, mas aí reside o erro dessa percepção. Em uma época onde o público se acostumou a experiências pasteurizadas ou hiper-complicadas sem resoluções claras, o filme reina por oferecer o simples de uma maneira dedicada.
Um mérito que pode ser dividido entre os dois anos a mais que a edição teve para polir o produto final – durante a pandemia entre 2020 e 2021 – e o roteiro que sabe construir não apenas as cenas de ação para que entreguem a maior descarga de adrenalina possível, mas a própria estrutura narrativa. É um deleite, raro nos últimos anos, passear por um filme que consegue engendrar de forma tão orgânica momentos cômicos, dramáticos, doces e eletrizantes com sucesso em todos. Algo que se perdeu durante as últimas décadas com a cacofonia de conceitos e métricas utilizadas para medir o sucesso de um filme.
Mas nada disso seria possível sem a presença magnética de Cruise na produção. Fazendo de seu Maverick alguém que, mesmo apanhando tanto pelo jeito rebelde de ser e por tanto tempo, ainda esbanja um carisma sanguíneo em sua teimosia. Contudo, o maior feito do filme é justamente contrapor o que faz parte da identidade real de Maverick e o que é só capricho ao colocá-lo de frente, vulnerável e sem sarcasmo com seus maiores medos.
O filme ainda pode ser visto como uma forma de dizer que os boomers ainda possuem seu valor analógico dentro do mundo digital por não serem “robotizados” pela tecnologia. Mas não deixa de ser interessante ver que mesmo esse valor ainda passa por um preço para legitimá-lo, o do reconhecimento dos próprios limites. Algo saliente no desfecho em que finalmente Hangman prova seu valor.
O filme acaba por ser um encontro entre as personas de Cruise, o aventureiro insano das últimas décadas e o igualmente insano intérprete disposto a ir fundo na vulnerabilidade de quem interpreta. Uma escolha aparentemente ambígua, mas que reflete bem quem se dedica a mais de 20 anos a ser o Buster Keaton do cinema de ação contemporâneo.
É como se, depois de percorrer o perigo e desafiar a morte tantas vezes para oferecer o melhor do entretenimento pipoca, Cruise finalmente entendesse que nenhum espetáculo se mantém relevante sem uma motivação humana sincera. A cena em que o filme puxa o freio de mão para mostrar como seu relacionamento com Iceman evoluiu da rivalidade tosca do original para uma amizade terna talvez seja a maior prova disso.
Ainda assim, a entrega a que o astro se submete – e exige em igual medida de seus companheiros a frente e atrás das câmeras- o torna uma figura ímpar na história do cinema. Maverick tem potencial para ser o filme avatar de Cruise que o defina para o cinema de ação e seus pares como Robert De Niro estava em 1980 para os colegas do drama.
E partindo dessa distinção, ela também se aplica à ação, o que o longa entrega como ninguém atualmente. Ao usar o máximo de efeitos práticos e métodos de filmagem que ampliam o senso de perspectiva limitada, o espetáculo não só é revigorante como também inteligível. Algo que faz jus às mais de 900 horas de material coletado e o preparo real dos atores. No entanto, nada disso importaria se o coração do filme não fosse prioridade.
Apesar de toda a vivacidade do roteiro escrito por Christopher Maquarrie, Eric Warren Singer & Ehren Kruger, voltado para a construção primorosa da ação do clímax, é muito satisfatório ver como o mesmo empenho é dedicado às cenas de ligação e construção dos personagens. Em uma franquia que costumava ser um pôster dos valores da era Reagan na década de 1980 – o império da testosterona inflada e irreverente – é curioso ver como a sequência funciona justamente por incorporar e aprimorar sem indulgência a iconografia – afinal, nada como um bom slow motion e uma música pop slick para aumentar a autoestima – e substituir categoricamente os atrofismos retóricos do original.