Por Cultura Plural
Por Névio de Campos
Na manhã de 30 de outubro de 2022, por volta de seis horas e quarenta e cinco minutos, paro em frente a uma escola pública da cidade de Ponta Grossa (Paraná, Brasil) e percebo uma cena nunca vista por mim: nove católicos (seis mulheres, três homens) com terços às mãos, uma imagem da Senhora de Aparecida suspensa e abraçada por uma das pessoas, uma garrafa plástica com água (certamente água benta) carregada por outro integrante. São todos símbolos importantes da Igreja Católica. Em frente ao portão de entrada, todos rezavam o terço. Trata-se do primeiro ato da “cruzada santa” (esse observado vis-à-vis) e preparação ao ato final (esse relatado por outrem): intercessão e borrifação de água benta sobre as urnas de cada seção.
Tão logo a pessoa responsável pela escola abre o portão (às 6 horas e 50 minutos), enfileirados, embora não tão ordenados como as marchas de soldados de um exército, mas com suas “armas” empunhadas (terços, imagem de Aparecida, garrafa d’água), adentram-se com o fito de purificar as urnas. Uma cruzada santa contra um suposto “mal”. Cada urna poderia estar tomada pelo “mal”; ou uma antecipação ao “mal”, que poderia estar nas digitais de um eleitor do “mal”; ou ainda, o exorcismo de uma possível manipulação do “mal” da era digital (demônio digital). Depois de um pouco mais de cinco minutos, às 6 horas e 57 minutos, o “exército” católico sai da escola e marcha em direção a outras zonas eleitorais, que ficam nas imediações, para fazer o mesmo ritual.
O “mal” não prevalecerá! O “bem” triunfará! Esse diminuto grupo de católicos, entre 40 e 60 anos, está irmanado de crenças comuns: uma história transcendente (a existência e a presença de um Deus no mundo humano), a possibilidade de um fenômeno miraculoso (ação divina no mundo humano), o poder da oração, a força da mãe de Jesus Cristo, a potência da água (benta), o sentimento de dever e de poder do católico para servir à cruzada contra as forças do “mal”. Esse ato expressa uma escatologia, que alimenta a vida humana, isto é, ideias de fim dos tempos e de salvação. Esse acontecimento local está ligado direta ou indiretamente a movimentos nacionais e internacionais, como por exemplo, ao Centro Dom Bosco, criado por leigos católicos, no Rio de Janeiro, em 17 de setembro de 2016.
A simbologia do “mal”, muito bem caracterizada na descrição bíblica de expulsão do casal do paraíso, é reatualizada nesse ato narrado anteriormente. A chaga original da queda da humanidade alimenta o imaginário e as práticas desses católicos, pois estão absolutamente tomados pela crença nisso tudo. Nada os deterá frente às suas crenças. Uma cruzada que deve ser assumida por todo “verdadeiro” católico. Esse universo simbólico os constitui quase que absolutamente, cuja ideia é bem x mal, verdade x falsidade, virtude x vício ou pureza x pecado, identidade x alteridade, etc. São tantas as palavras que expressam a imagem da divisão entre as pessoas, que é impossível trazê-las todas aqui. Esses termos são representações que funcionam para dividir as pessoas. Mais do que dizer o que de fato cada pessoa é, produz uma separação. O mais visível é a criação das fileiras do “bem” e do “mal”.
Essa classificação, essa separação, essa divisão entre o “bem” e o “mal” é deletéria à condição humana. Ela pode reatualizar, realimentar experiências ocorridas ao longo de diferentes momentos, como, por exemplo: a queima de pessoas, consideradas “hereges”, “bruxas”, “feiticeiras”; ou a discriminação, retaliação, expulsão, o silenciamento de pessoas em razão de serem diferentes, sob alegação de ser a própria encarnação do “mal”.
Por sorte, os mesmos símbolos, usados por esse pequeno grupo (terço, Senhora de Aparecida, água benta), podem ser instrumentos para interceder o respeito, a tolerância, a união, o amor, o perdão. A religião precisa ser o lugar do religare. Afora isso, transforma-se em outra coisa: algo temerário e deletério à vida humana. Em nome de um suposto “bem”, pode-se propagar ou praticar a discriminação, a divisão, o preconceito, a ignorância. Estaríamos em uma guerra religiosa na política? Existe alguma fronteira entre religião e política? A mistura de religião e política implica o fim da democracia? Ou não existe nada disso… E nada mais é do que devaneio de quem escreve essas linhas? E agora, Olga, Maria, José, Eva, Adão…?
Névio de Campos é professor no PPGE/PPGH da UEPG, pós-doutor em Sociologia dos Intelectuais (EHESS, Paris), pós-doutor em História Intelectual (UFPR), doutor em Educação (UFPR) e pesquisador Produtividade CNPq.