Um filme de ação sempre é movido pelo quão bem os realizadores conseguem adicionar elementos às sequências usando componentes não verbais atrelados à geração e manutenção de adrenalina no público. Com os primórdios do gênero pautados na comédia física de filmes mudos de mestres como Charlie Chaplin, Buster Keaton e Harry Lloyd e elementos da plasticidade encenada dos musicais, tal segmento cinematográfico sempre se vende pela promessa de espetáculo, mas se sustenta no quanto consegue nos imergir dentro deste.
Em quase todos os gêneros da sétima arte, a base da imersão e, consequentemente, da suspensão da descrença reside no quanto uma obra consegue nos fazer se importar com o elemento humano que nos apresenta – em casos como da última trilogia da série Planeta dos Macacos (2009-2017), uma similaridade com o que entendemos como humano.
Para isso, todo roteiro deve se prestar a apresentar personagens que possuam características críveis e que nos convidem a tomar seu lado – ou o lado da obra – durante a progressão e eventual conclusão de seus conflitos narrativos. Via de regra, a caracterização (processo de apresentação de características, objetivos e personalidade dos personagens) é feita no início do filme para que a audiência esteja a par e engajada aos protagonistas em seu conflito em “tempo real”. O que é crucial no desenvolvimento de trama e do arco de mudança, evolução ou decadência do personagem em questão.
Nos últimos anos, os lançamentos no cinema e no streaming provam que essa construção básica que conecta o público com a ação via personagens – o que amplifica seu deslumbre – vem sendo preterida pelo zeitgeist hollywoodiano contemporâneo para favorecer a forma sobre o conteúdo. No lugar de tramas sólidas e personagens bem definidos em seus desenvolvimentos, temos trucagens com ordens cronológicas, personagens rasos, tons que querem abraçar tudo, ritmo acelerado que impede que a audiência processe o efeito das reviravoltas e fotografias espalhafatosas que, na ausência de uma dramaturgia bem elaborada para se apegar, bombardeiam o público sensorialmente para que este não note a superficialidade do que apresentam.
Tal combo de falhas na caracterização pode ser ilustrado bem em dois lançamentos recentes que possuem sequências de ação divertidas, mas que se tornam esquecíveis por não possuírem sustento no desenvolvimento narrativo. Tanto em O Agente Oculto (2022) dos irmãos Russo como em Trem Bala (2022) de David Leitch, há espetáculos vazios em torno de suas propostas que ambicionam emular os melhores exemplares do gênero recente, mas que se perdem por não oferecem o básico ao público.
Em O Agente Oculto, os males de uma construção desfocada podem ser comparados à figura de seu protagonista, Sierra Six (Ryan Gosling). Com um ator que é habituado a interpretar bem tanto tipos silenciosos e sisudos como palhaços orgulhosos, a produção sofre ao não definir bem seu passado e por oscilar sua personalidade entre o supra sério e piadinhas irônicas que quebram sua coerência.
Isso ecoa na inconsistência da direção e cria um tom desconjuntado que quer ser tão dramático quanto Skyfall (2012), tão elegante nas coreografias de luta quanto a saga de John Wick (2014-) e tão sofisticado quanto A Origem (2010) em sua estrutura. O resultado de tanta ambição sem consideração pelos personagens é um filme que hora é muito seco e bruto para ser divertido, e muito bobo para ser tocante – vide o input dramático ridículo na luta final entre Gosling e o vilão de Chris Evans.
Em Trem-Bala, os danos de uma caracterização ruim são amenizados pelo tom da obra, já que, por não se levar tão a sério, torna-se mais divertida que a dos Russo. Mas isso não quer dizer que as falhas não atrapalhem o lazer da sessão.
A caracterização – definir quem é, o que quer e o que o diferencia dos demais – dos personagens cumpre seu papel no início da projeção. O problema é que, com um número gigantesco de personagens para apresentar em uma locação única (o trem do título), o filme apela a flashbacks jogados a esmo para disfarçar sua falta de solução para como integrá-los harmonicamente dentro da narrativa. Algo piorado pelas vezes que diálogos expositivos e superficiais tentam poupar o público de mais um flashback aleatório.
Tudo soa como uma trapaça e afeta diretamente a suspensão de descrença do público, já que a qualquer momento a trama pode mudar de rumo aleatoriamente só porque um flashback assim o quis. Ou seja, qual é a graça de acompanhar personagens sendo que nada é sólido? A ação colorida e enérgica – méritos autorais de Leitch, ex-coordenador de dublês – se torna um belo artificio que morre na memória da audiência por não ter pilares humanos mais consistentes.
Felizmente, nem todos os filmes atuais seguem essa tendência. A nova película da série Predador (1987-), A Caçada (2022), mostra como o básico sempre triunfa sobre o espalhafatoso por nos dar personagens reais para quem torcer, temer e se importar. Temperos que, junto à objetividade de ir direto ao ponto, são valiosos para dar emoção e sentido à ação.
Ao deixar claro os objetivos de Naru (Amber Midhunter) enquanto uma caçadora que precisa se provar para sua aldeia comanche, estabelecer seus vínculos de afeição e rivalidade com o irmão Taabe (Dakota Beavers), definir quais são seus pontos fortes – a inteligência e resiliência – e os fracos – falta de experiência e afobação –, o filme nos dá uma protagonista que evolui diante das câmeras enquanto prepara o espetáculo de ação e horror com o que afeta Naru durante sua evolução.
E o melhor, tudo sem usar nenhum flashback, flashfoward ou qualquer outra interrupção abrupta que quebre a estrutura harmônica do filme. Apenas a força das imagens e da coesão narrativa, como mostram as cenas de Naru treinando e evoluindo suas técnicas e armas. Um motif para ilustrar a evolução de suas habilidades e personalidade.
É claro que todos, se pudessem, criariam obras instigantes dramaticamente e sensorialmente estimulantes como Paul Grengrass (segundo e terceiro filmes da Saga Bourne) Sam Mendes (Skyfall) e Christopher Nolan (A Origem, Trilogia Cavaleiro das Trevas e Dunkirk). Mas se olharmos atentamente, vemos que em todos esses exemplares há um respaldo humano que deixa a ação inesquecível em seu desenvolvimento que alia espetáculo e dramaturgia de forma divertida e emocionante. E até essas referências também falham quando priorizam a forma/estética ante o texto coerente, coeso e crível em suas propostas – como mostram Jason Bourne (2016), Spectre (2015) e Tenet (2020).
Como George Muller exemplificou em Mad Max: Estrada da Fúria (2015), uma histórica de ação não precisa ser complicada, ela só precisa acontecer usando justamente… ora pois… a ação.