Por Cultura Plural
Por Victor Gabriel Schinato
A floresta sussurra, não que eles a escutem.
Um sibilar baixo que se esconde debaixo do farfalhar das folhas.
Aquele crepitar que se mistura ao ciciar das cigarras.
O guardião vigia no ventre das águas,
esperando por aquele que perturbará a canção da Amazônia.
Sempre gostei de ouvir o silêncio do rio. A água se chocando contra as rochas das margens. Pássaros cantando entre as folhas. Animais amassando gravetos no chão. Longe de todas as pancadas dos machados e dos gritos da natureza morta.
— Eu tenho que voltar, não? — Pergunto após ouvir passos, esperando pela permissão para esquecer de minha vida. Brinco com meus pés mergulhados na água e tento não expressar meu descontentamento com um suspiro ruidoso.
Um puxão na manga de minha camiseta faz com que eu abra os olhos. Orelhas dobradas e língua para fora. Olhos brilhantes e alegres. Pelo grosso cheio de pequenos gravetos. Coleira metálica com um rastreador. O enorme pastor alemão lambe meu rosto, e me convoca de novo ao trabalho.
— Às vezes eu te odeio — resmungo com desdém enquanto calço minhas botas novamente. O cão inclina a cabeça e gane dramaticamente, acabo acariciando a cabeça do animal. — Certo, Sargento, não consigo te odiar. E, olha que eu já tentei.
Devolvo o chapéu de pano à minha cabeça e volto ao meu trajeto, usando um enorme tronco carbonizado de ponte para escapar do fundo lodoso do rio. Meu dever é apenas um: marcar as árvores que serão derrubadas. Com um canivete e dois movimentos rápidos em X, traço o destino e a morte de um ser centenário. A seiva vermelha mancha a lâmina como se fosse sangue.
O cachorro saltita entre os galhos caídos, não tenho certeza de que ele entende qual é o nosso trabalho aqui, e como isso afeta tudo. Sou obrigado a isso. Alguém tem que fazer. Preciso continuar para que meu irmão não tenha que começar.
A penumbra laranja do pôr do sol mal alcança o chão coberto de folhas, e é como sei que é a hora de retornar. A floresta mal tolera nossa presença durante o dia, e todos nos alertam para não a invadir quando as estrelas se revelam. Sussurros abafados, como se não quisessem que o ouvissem. Ninguém diz o porquê, apenas reafirmam o aviso com um silêncio tenso.
****
O barraco que sou obrigado a chamar de casa nas últimas semanas mal contém o cheiro da serragem, que se acumula acima de cada superfície. A madeira mal-acabada das paredes range chorosamente com o balançar da rede que sustenta meu peso. As grades da janela mal me permitem ver as estrelas. Fito incessantemente a chama bruxuleante da vela em cima da escrivaninha vazia, exceto por um pequeno porta-retratos com uma foto de uma criança sorridente.
Sargento nunca esteve tão agitado, corre e late no cubículo de pouco mais de cinco metros quadrados que disponho para guardar meus pertences e dormir, mais de uma vez já pulou em minha barriga e me arrancou o fôlego. Algo não está certo.
— Horário da janta! — Sebastião esmurra a porta, e quase derruba as paredes com sua força. Truculento e desagradável são boas palavras para o definir. — Preciso ir aí te tirar da maldita rede?
Quando a porta range ao ser destrancada e abrir, as unhas de Sargento raspam freneticamente no assoalho e o cachorro dispara acampamento adentro. O cão tomou impulso na rede, e isso me jogou no chão. Levanto rapidamente e dou de cara com os olhos injetados de sangue de meu pai e seu hálito de álcool.
— Já te disse para adestrar seu cão, antes que eu seja obrigado a dar meu jeito — ele resmunga com a fala enrolada.
— E eu já deixei bem claro que se você tocar em um pelo sequer do Sargento, eu faço uma ligação muito rápida e te mando para a cadeia. Não ache que seus amigos vão te salvar por muito tempo. — Ergo meu queixo e confronto o homem. — E, caso a lei não ajude, eu mesmo queimo esse lugar até não restar nada além de fuligem e labareda. Agora, se me permite, preciso ir atrás do meu cão.
O homem resmunga algo mais, não que eu dê atenção. Corro pelo acampamento, ouvindo os gritos de trabalhadores enfurecidos por um enorme pastor alemão os atropelando. Vejo homens bradando serras, cordas e armas. Numa serraria ilegal, a paciência não é uma das virtudes que se fazem presentes.
Os altos muros de troncos cortados são uma presença opressora e intimidante. Garantem que nada entre ou saia sem que esteja sendo vigiado.
Sargento, desde que era um filhote, é capaz de ser uma notável força do caos. Não é difícil seguir o rastro de objetos caídos, berros e pessoas reclamando. Para minha infelicidade, o rastro me leva até a fronteira da floresta, e segue em frente.
As plantas rasteiras se enroscam em minhas pernas. Galhos baixos cortam meu rosto. Apenas tento seguir a luz vermelha do rastreador na coleira de Sargento. Me obrigo a continuar correndo atrás do único que torna a vida aqui um pouco mais suportável. A melodia da floresta entorpece minha busca.
A perseguição pela mata é abafada e sufocante. O suor se acumula acima de minhas sobrancelhas. Perco a noção do tempo enquanto corro.
****
Um ganido alto acompanhado de um clarão me fazem acelerar ainda mais. As lamentações do cachorro me trazem até a beira do rio onde estava mais cedo. As mesmas folhas empoçadas no chão. Os mesmos galhos quebrados. Mas, não é o mesmo rio, o tronco carbonizado não está mais aqui. Tudo que vejo em seu lugar é Sargento, deitado no chão.
O cachorro está arfando. A lateral de seu corpo já não possui pelos, apenas pele queimada. O peitoral do cão sobe e desce rápida e tremulamente. Me aproximo para o tocar, e seus olhos fitam o buraco onde o tronco jazia, aterrorizados. Assim que minhas mãos tocam o animal, toda sua musculação retesa e um alto latido de ameaça silencia a noite.
— Ei, sou eu. Sou só eu. Está tudo bem, nada vai acontecer. — Acaricio as orelhas do cachorro.
Nada vai acontecer.
Nem eu acredito nisso. Algo já aconteceu. Os alertas silenciosos dos moradores da floresta inundam meu cérebro. Perturbamos algo. Algo que não deveria ter sido acordado.
— Preciso cuidar disso aí, vai ficar tudo bem. — Cuidadosamente pego o cão em meus braços e o ergo tentando minimizar qualquer movimento brusco. O animal tenta conter seus ganidos de dor, mas não há muito que possa ser feito.
Andar pela floresta já não é simples, a situação só piora quando tenho que carregar um cachorro. Faço o melhor para ser suave em minhas passadas.
Ocasionalmente, um clarão de luz ultrapassa a muralha de troncos e me orienta de volta ao acampamento. Todo o lugar parece mais barulhento do que o habitual.
****
O calor me atinge antes de tudo.
Então, os grânulos de cinza começam a cair em meus cabelos.
As labaredas sobem aos céus e se misturam às estrelas.
Os altos muros da serraria caíram e não passam de madeira crestada.
Vejo as barracas e as casas improvisadas queimarem. Todos já estavam na cama, e agora estão presos no fogo. O rugido do fogo sobrepuja os gritos.
Do centro do acampamento, uma figura rouba as estrelas do céu com sua silhueta luminosa. Tão alto quanto os antigos muros. Os olhos queimam em âmbar e raiva, vermelhos como a seiva das árvores. Uma juba de brasas vivas, que queimam por debaixo das escamas de carvão e ouro.
A enorme serpente torna seu olhar para mim. Toda a intensidade aquece minha pele. Me perco nas faíscas espiralantes.
Quando dou por mim, a criatura está a poucos centímetros do meu rosto. Seu hálito me queima. Sua saliva goteja em minha pele e inflama minhas roupas. Os olhos buscam em minha alma, e retiram algo que sei que nunca serei capaz de recuperar. A serpente encara Sargento em meus braços, e sua expressão raivosa se dissipa.
Cuidadosamente, passo atrás de passo, me afasto do ser sem desviar meus olhos da infinidade de escamas. Assim que o calor já não mais me alcança, me permito a respirar. Aperto Sargento contra meu peito e tento tranquilizar sua respiração acelerada.
Novamente, volto a caminhar pela floresta. Desta vez, o silêncio reina. Nada quer atrair a atenção. Nada deseja perturbar.
Preciso continuar. Só preciso continuar.
Tudo que sobrou foi labareda e fuligem.
Até encontrar aqueles que me alertaram.
Qualquer um que possa ajudar.
Origem do personagem:
Entidade de origem tupi que atua como guardião da floresta. Grande cobra que expele fogo e queima todos que tentam destruir a natureza. É dito que se camufla como um tronco, ou se esconde no rio até que sua floresta seja ameaçada.