Por Sérgio Gadini
É numa esquina com pouca iluminação e, até há pouco silenciosa, que se registra um encontro inédito de duas lendárias figuras de lutas abolicionistas do Brasil ainda não republicano. O paraibano que viveu e lutou no Recife, Vidal de Negreiros (1606-1680), desce rumo à Vila Oficinas, enquanto o baiano-paulista Luiz Gama (1830-1882) atravessa a última via, antes dos portões de acesso ao atual Germano Krueger, pouco abaixo da antiga linha da Viação Férrea que ligava São Paulo ao Rio Grande do Sul.
Não é todo dia que se pode celebrar, ao menos em memória e leitura, um inusitado encontro de duas ilustres figuras que fizeram parte das incontáveis iniciativas pelo fim da colonização e da escravidão no País. E, talvez, mais improvável ainda seria imaginar tal cruzamento em uma das cidades paranaenses, onde a própria história regional ainda parece silenciar quando alguém ousa lembrar que, por aqui, as oligarquias insistem em se perpetuar em famílias herdeiras de sesmarias e fazendas que sobrevivem às sombras de mortes, execuções e apropriações indevidas de áreas sob documentos ‘grilados’ ao longo das margens do Iapó, Tibagi até supostas construções ilegais em alagados locais. “Ah, mas aqui não teve ditadura, viu?”, reclamam os porta-vozes.
O que impressiona, por aqui, decorre dos registros laterais, ainda presentes. Afinal, é a mesma região onde a principal rua comercial leva o nome de um ex-governador que fugiu ao primeiro boato de tropas rebeldes das bandas sulistas e, tão logo voltaram os federalistas, tratou de condenar e matar o mesmo barão que negociou um acordo de não violência com rebeldes ocupantes para evitar saque na capital.
O fim da tarde no encontro da Vidal de Negreiros com Luiz Gama lembra um pouco o ambiente ermo, silencioso e pouco movimentado, na região das antigas oficinas da rede ferroviária. Quase tudo é história, de um passado de que se orgulham moradores que viram a Cidade crescer ao longo da linha que ligou dois dos principais bairros povoados graças ao desenvolvimento e urbanização da rede: Uvaranas e Oficinas, passando pelas duas estações centrais (uma que virou Saudade, a outra nomeada como Arte).
Enquanto a Vidal de Negreiros liga a Rua Alberto Torres aos fundos da Vila Oficinas, Luiz Gama conecta, na transversal, a Visconde de Mauá com a Padre Nóbrega. Para quem anda no trajeto, e conhece o bairro, ou mesmo para quem acessa mapas digitais, verifica-se que Gama e Negreiros são vias com aproximadamente 800 metros cada, em ambos os casos ladeadas basicamente por moradias modestas, eventualmente margeadas por algum lote vazio, cena comum em área de especulação imobiliária, como é o caso da Princesa dos Campos.
O improvável encontro de dois defensores da independência, anticoloniais e, por variadas razões, abolicionistas, registram uma distância cronológica de quase dois séculos, mas mostram que a nomeação de espaços públicos é, sempre, fundamental para atualizar a memória da vida e história de uma nação que é formada por atores sociais, que presenciaram injustiças e também ousaram não silenciar frente aos incontáveis desmandos registrados no que foi o tempo pré-republicano em terras verde-amarelas.
Temor, ainda que silencioso, é de que porta-vozes das ensandecidas oligarquias regionais, ao saber de tais nomeações que, por sua vez, inspiram encontros de abolicionistas em ruelas na princesa dos campos generais, resolvam levantar motins de boatos ou mentiras lá pelas bandas dos palácios da Ronda, como aconteceu nos anos recentes, quando se fala em história, direitos humanos, memória e vida.
Sérgio Gadini, jornalista e cronista em situações ocasionais na província.