A mística que une realidade e ficção sempre permeia retratações da cidade de Los Angeles, já que é algo indissociável de sua história povoada por estrelas atemporais do cinema. Porém, apenas os que crescem lá conseguem entender isso bem, já que para nós, de outro país e outra realidade, tal mística é tão produto da ficção quanto as demais ficções produzidas na icônica cidade californiana. O que mata o suposto charme especial ou uma conexão com o além-tela que a mística poderia apresentar.
Isso faz de sua reprodução além dos EUA algo condenado a morrer de inanição, mal que atinge todos os que não compartilham da visão de Paul Thomas Anderson sobre o local em seu novo projeto, Licorice Pizza. No longa, a cidade e sua áurea são tão protagonistas quanto o romance do casal formado por Gary (Cooper Hoffman) e Alana (Alana Haim). Ambos vivem aventuras e percalços pela cidade no início da tumultuada década de 70 enquanto tentam decidir se a amizade – de uma moça de 25 anos e um rapaz de 15 – pode vir a ser algo mais dentro dessa realidade hiperbólica.
O amontoado de vinhetas que compõem a estória é fruto de várias lembranças da juventude de Anderson e de seus amigos dentro do Vale de São Fernando em Los Angeles. Fazendo da história o seu próprio Amarcord (1973) particular, onde a nostalgia é banqueteada pelo carinho melancólico de quem olha inconsequente para o próprio passado, o cineasta, que dirigiu obras monumentais do cinema americano recente como Sangue Negro (2007) e O Mestre (2012), acaba caindo na armadilha do saudosismo e apresentando seu trabalho mais relaxado e autocentrado.
O hermetismo dos filmes anteriores de Anderson nunca foi um problema. A riqueza dramática de seus personagens e a sua maestria em conduzir tais narrativas, seja pelo subtexto ou pela mise-en-scene, sempre imprimiam um aspecto universal às estórias particulares de pessoas obsessivas procurando ser amadas.
Em Licorice Pizza, pela primeira vez, isso não ocorre. A ausência de uma espinha mais clara e definida tira do filme toda a beleza que a direção constrói. Além de expor o quão alienado o diretor e suas visões sobre o amor são em comparação com as contemporâneas.
A maestria da direção é magnética por combinar movimentos de câmera, texturas, cores e orquestração dos atores. Suas deixas são precisas na hora de inserir músicas poéticas por dialogarem com o subtexto das cenas – destaques para “Let me Roll it” de Paul Maccartney e “Slip Away” de Clarence Carter. Todo o ritmo da edição cria um embalo agradável e sedutor para se acompanhar os altos e baixos do romance do casal principal conforme figuras como Jon Peters (Bradley Cooper), Jack Holden (Sean Penn) Mary Grady (Marriet Samsom Harris) – todos baseados em figuras reais da época – pipocam em tela para oferecer contrapostos ao casal.
Mas nada disso é capaz de tirar a impressão de que tal deleite cinematográfico é apenas uma grande vitrine brilhosa que obscurece uma história problemática contada de forma relapsa em sua estrutura e descaso com os arredores do núcleo principal.
O romance principal pode ser gracioso em seu desenvolvimento. Inocente, ele cria um ar de pureza que só a juventude, livre das obsessões que petrificam a vida dos adultos da trama, consegue proporcionar. Mas quando analisamos um pouco mais além da beleza etérea que as lentes e holofotes de Anderson e Michael Bauman produzem na superfície, vemos que este flerte entre pessoas em épocas da vida diferentes é pautado em uma relação vertical e deprimente.
Tudo que diz respeito à personagem de Alana é sempre limitado ao desejo e a visão de Gary sobre ela. A discrição de seu ambiente familiar judaico conservador e o fato de ela decidir ficar com o rapaz por falta de opções melhores revelam o sexismo com que Anderson enxerga a personagem. Por mais cativante e competente que sua intérprete seja, é impossível percebe-la como algo além de um fetiche ambulante da direção, que frequentemente a coloca sendo mostrada ou seminua, ou sofrendo assédio de homens mais velhos.
O filme tenta justificar esses e demais destrates com minorias se escorando no argumento de que são componentes basilares para uma retratação fidedigna da época. Contudo, ao não apresentar nenhum detalhe da época que ressoe com a contemporaneidade, o filme se torna um esforço de nostalgia esvaziado que não consegue disfarçar seu machismo.
Obviamente existe um esplendor reconhecível vindo do fato do filme ser um resquício precioso da juventude e do amor de seu criador pela cidade de Los Angeles. Mas quando consideramos o modo como isso foi feito em tela, soa como contar uma piada interna para alguém de fora do grupo. O receptor desavisado pode até entender o cerne do humor, ou nesse caso da magia do conto, mas nunca o captará propriamente a ponto de aproveitá-lo por completo. E até é bem provável que saia se sentindo ofendido.