Por mais que nostalgia e saudosismo sejam termos que tendem a ser usados em contextos semelhantes, há uma diferença. Enquanto a nostalgia parte de um sentimento melancólico em relação ao passado, à base de memórias primordiais, o saudosismo é alimentado pela mesma fonte, mas as usa para criar uma realidade romantizada a partir do que se lembra e, principalmente do que se ignora do passado. Se uma é um porto seguro para autoproteção e delimitação de nossa personalidade frente ao desconhecido do presente, a outra é uma forma de escape e negação da realidade.
Na nova versão de Amor, Sublime Amor (2022), Steven Spielberg, amante declarado do cinema clássico, resiste à tentação de se debruçar sobre a elegância saudosista do passado e sua ilusão de maior simplicidade. Ao invés disso, escolhe enveredar pela via nostálgica para refletir sobre o que conecta a tragédia criada por Stephen Sondheim nos anos 1950, aos moldes de Romeu & Julieta, e o presente: a raiz facilmente inflamável do preconceito e do machismo que não se aquietam enquanto não ceifarem a todos que as alimentam.
A nova versão traz novamente o casal formado por Maria (Rachel Zegler), imigrante de Porto Rico, e Tony (Ansel Egort), descendente de irlandeses, tentando fazer seu romance florescer em meio à guerra de gangues a que ambos são presos de alguma forma em cada lado. Por mais que a sinopse seja a mesma da versão de 1961, as semelhanças ficam apenas na superfície.
Mudando contextos e personagens de alguns números musicais e reinventando os demais, o filme transpira frescor por, ironicamente, conseguir trazer o espirito jovial e romântico pré Nova Hollywood (1969-1980) dos musicais da era de ouro. Se isso é possível, é porque Spielberg é um dos poucos cineastas vivos capazes de recriar tal atmosfera romântica e com tons de fantasia da época e, simultaneamente, repelir o cinismo facilmente associado ao gênero musical.
A escolha de trazer atores de origem e etnia condizentes com os personagens, principalmente os latinos, dá ao filme uma autenticidade que por si só já justifica sua existência. Por mais que seja um clássico absoluto com todos os méritos criativos e relevância cultural, a produção original de Jerome Robbins e Robert Wise é datada, já que o casting não possui atores concordantes com a etnia de seus papeis. Traço vergonhoso do racismo de praxe na indústria da época.
A preocupação com a fidedignidade com os retratados e seus lugares de fala se estende para o núcleo feminino. Se no original as questões de conflito entre gêneros no grupo dos Sharks tinham tons de rebeldia para alimentar os jogos de sedução entre os integrantes, aqui é nítido que o diretor e o roteirista Tony Kushner acrescentam tridimensionalidade às camadas políticas desse conflito. Como fica evidenciado na imaginativa nova encenação de “America”.
O texto também ressalta na segunda metade que, em grande parte, o conflito entre Sharks e Jets existe mais por razão de bravata e virilidade exacerbada do machismo de seus integrantes. Não à toa, a relutância de Tony em voltar aos Jets é um símbolo de sua maturidade.
Em termos musicais, o diretor e sua equipe se esforçam para deixar cada segmento menos teatral e mais pulsante na linguagem cinematográfica. Todos os números são beneficiados por contarem pequenas histórias de forma enérgica – marca clássica de Spielberg – e em sintonia com letras e coreografia.
Apenas o número do baile fica atrás da versão de 1962, a qual era glamorosa por usar de vários artifícios óticos em sua composição. De resto, todas conseguem reimaginar e reforçar a beleza das composições de Sondheim. O destaque fica para “Gee, Officer Krupke” que, mesmo se passando em um único lugar, usa de todo o brilhantismo da mise-en-scene de Spileberg e cia para divertir e ilustrar a displicência dos Jets.
Mestre da encenação e do ritmo, Spielberg continua tão afiado quanto em seus filmes de guerra e ação. Mesmo que empregue menos planos longos e silhuetas – marcas características de sua autoria -, o diretor ainda está em casa ao poder se esbaldar na estética impressionista do período que retrata, essa sim de inofensivo teor saudosista. Ao conciliar paixões criativas com o subtexto poderoso da peça, o diretor atua em um equilíbrio preciso que permite ao elenco, de rostos desconhecidos na maioria, e à equipe,exprimirem o melhor que podem de cada um.
Em especial, o parceiro de longa data do cineasta, o cinematógrafo Januz Kaminski, orquestra no longa um de seus melhores trabalhos. Com cores vivas, texturas fantásticas e luzes expressionistas, ele cria uma atmosfera alheia à qualquer senso de realismo cínico para criar algo mais poderoso em sintonia com o tema da história: a bravura inocente da juventude como escape para uma realidade turbulenta.
(Alerta para revelações do enredo)
Mantendo o final original, mas sob o olhar de Valentina (Rita Moreno, a Anita da versão de 1962), o longa exibe uma faceta melancólica incomum no cinema de Spielberg. Famoso pelo otimismo, o cineasta adota uma postura semelhante à da chefe de Tony. Valentina acredita maternalmente na bondade dos meninos que viu crescer nas ruas do bairro. Mas vendo os vândalos, brutos e estupradores que se tornaram, ela não pode mais deixar de sentir a dor de saber que nem tudo pode ser resolvido com empatia e boas intenções. O que agride os valores em que sua vida é pautada.
Como diz a letra de “Somewhere”, cantada por Moreno, “existirá um tempo e um lugar para nós”. No contexto do filme, ela é direcionada para Tony e Maria, a quem é negado a possibilidade de viver um amor puro longe do caos daquela realidade. Mas vendo dentro do contexto geral, ela fala sobre pessoas como Valentina, que acreditam em um futuro melhor, mas que a cada golpe da realidade, deixam tal sonho definhar gradativamente.
Quando vemos o desfecho de Tony, constatamos, com pesar, que talvez o “lugar e tempo” de Somewhere esteja em outro mundo. A guerra entre gangues pode ter acabado quando os créditos sobem, mas seu preço foi um árduo despertar que saudosismo nenhum pode combater. O de saber que, seja no passado ou no presente, as consequências da xenofobia, do machismo e da intolerância se mostram, infelizmente, atemporais.