Por Cultura Plural
Heraldo Santos Filho, 74 anos, caminha todos os dias de sua casa, localizada no bairro Olarias, para almoçar no Restaurante Popular. O caminho é curto para quem costumava ir a pé do bairro da Ronda até o centro todas as manhãs para pegar “a máquina” – como ele chama a Maria Fumaça nº250, atualmente em exposição no Parque Ambiental – e então chegar ao pátio da Rede de Viação Paraná-Santa Catarina, em Oficinas.
Hoje aposentado, começou a trabalhar aos 12 anos e sabia fazer de tudo um pouco, foi desde ajudante de encanador até fabricante de portas e janelas. Com 18 anos se candidatou a uma vaga de carpinteiro na Companhia Brasileira de Materiais Ferroviários (Cobrasma). Ao chegar no lugar do teste um dos funcionários o viu e gritou: “Pode ir embora, você não aguenta o serviço”. Heraldo aparentava ser fraco, tinha no máximo 60 quilos.
Mas um senhor o encorajou a continuar e então ele passou no teste. “Eu pertencia à seção de obras, lidava com madeiras, não era metalúrgico. Me puseram para trabalhar junto com um louco, o cara era louco”. Quando foi contratado, os funcionários mais velhos da empresa estranharam, “a Rede agora está contratando piá?”. Assim mesmo provou que sabia fazer o serviço e ensinou o companheiro.
Quando a Cobrasma fechou, Santos foi contratado pela Rede, que acabara de ser destruída por um incêndio e precisava de mais funcionários para a reconstrução. Na nova empresa, era responsável pelo “beneficiamento de madeira”, preparava os produtos para os trens transportarem aos destinos. “Tinha muito vagão de madeira para carregar”. O aposentado se diverte ao lembrar dos vagões que carregavam gado, apelidados de “gaiolas”.
Apesar da aparência, Heraldo era forte. Conta que, às vezes, ajudava os companheiros a trocar os vagões de uma linha para outra. Cada roda pesava em média 250 quilos. “Eu não era desse setor, mas experimentava fazer para ver se conseguia”. E conseguia.
Tornou-se conhecido na empresa pelo apelido “Índio”, porque quando chovia tinha que atravessar os arroios da Ronda para poder trabalhar. Brincava com os colegas que eles reclamavam demais, mas só tinham molhado a barra da calça. “Você tá chorando por causa da barra da calça. E eu que tive que atravessar o rio a nado para vir trabalhar?”.
Depois de seis anos na Rede, resolveu pedir a conta em 1975 por diversos motivos. Além do baixo salário, não havia a possibilidade de crescer na empresa. Heraldo já trabalhava no último nível possível, como auxiliar de artífice. Foi então que decidiu pensar em sua família. “Quando meu filho nasceu eu saí da Rede, o salário era muito baixo”.
Sem emprego, fez concurso de modelador de fundição e começou a trabalhar em uma metalúrgica de Ponta Grossa, onde ficou por 30 anos até se aposentar e mais 10 após a aposentadoria. Seu trabalho na empresa era fazer modelo de máquinas, serviço que ninguém mais sabia. Pela sua importância permaneceu trabalhando mesmo depois de uma demissão em massa que afetou cerca de 300 trabalhadores.
“Não era perna dura como esses caras de agora”
Ponta-grossense nato, Heraldo Santos Filho é torcedor fanático do Operário Ferroviário. Assiste aos jogos do time no estádio desde a época em que trabalhava na Rede. A tradição passou por gerações. Costumava levar os filhos e netos ao Germano Krüger e a cada gol do Fantasma descia correndo as arquibancadas e se agarrava nas grades para comemorar.
Atualmente ele é craque em acertar os palpites dos resultados dos jogos. Acredita que o Operário tem que melhorar para permanecer da série “B” do Campeonato Brasileiro e coleciona canecas dos dois times do coração: Santos e Operário.
O aposentado relembra a rivalidade que o Operário tinha com o extinto Guarani, mas afirma que também gostava de assistir aos treinos e jogos do rival. Certa vez, ele tinha uns 23 ou 24 anos, pulou o muro do estádio com um amigo para assistir a uma partida. Os cachorros ouviram e começaram a avançar anunciando os invasores. “Não sei de onde apareceu aquela cachorrada”. O Guarda de plantão pegou em flagrante e fez questão que os dois saíssem pelas portas da frente do estádio. Primeiro levou seu amigo e, nesse tempo, Heraldo conseguiu se esconder atrás de uma casa, esperou um pouco e continuou a correr até chegar no campo para assistir ao jogo, para desespero do policial.
Quando jovem era bom de bola, acertava no ângulo e era bom batedor de falta. “Não era perna dura como esses caras de agora”. Fazia parte do time da Ronda e participava de torneios e campeonatos. Sua equipe disputou o Campeonato Amador por duas vezes e costumava viajar para torneiros em cidades como Palmeira, Campo Largo, Castro, Porto Amazonas, Irati e Prudentópolis. Na época os ônibus eram raros, por isso os jogadores viajavam em paus de arara, caminhões destinados ao transporte de pessoas. Em algumas ocasiões viajavam um caminhão para os jogadores e outro para a torcida. De acordo com Heraldo, os companheiros de bola eram bons, mas bebiam demais. Para ele essa é a explicação de a maioria já ter morrido.
O aposentado parou de jogar aos 32 anos por causa dos filhos. Segundo ele, tinha que ter saúde para cuidar da família. “Para jogar bola tem que praticar, tem que treinar”. Mas não parou completamente, ensinou futebol para os filhos e netos e continuou bom de bola.
“Não dá pra parar”
Heraldo construiu sua própria casa, onde mora até hoje. Aos 23 anos conheceu sua esposa e se casou com 28. Há sete anos descobriu o Parkinson e desde então faz tratamento contra a doença. Mas não se entrega. Faz caminhadas regulares, conversa com os amigos e passeia pela cidade. Além do Parkinson não tem outras doenças, como diabetes.
Santos é apaixonado pela esposa, Roseli Santos, com quem teve três filhos, uma filha e nove netos. No fim do ano passado ela faleceu, dois meses após um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Desde então Heraldo sente a falta da esposa. Como qualquer história de amor, os dois dedicaram a vida um para o outro e aproveitaram juntos até o último momento. Pode-se dizer que nem a morte os separou.
Atualmente Santos aluga parte da casa, que é grande. Mas vendeu o carro quando sua carteira de motorista venceu no ano passado. Parou de dirigir porque não valia a pena pagar para renovar a carteira por menos tempo, por conta da doença. Um dia antes do vencimento, Heraldo capotou o carro. Para ele a causa foi o remédio, que é forte. “Para que eu vou dirigir? Colocar a vida dos outros em risco?”.