Por Cultura Plural
“Posso te pedir uma coisa, meu filho? Me queira bem que não custa nada”.
É o que pede, solene, o homem de mais de 1,80m sentado na cadeira da varanda com postura reta e um chapéu Panamá surrado, mostrando que o objeto fora recentemente usado para um trabalho duro.
Valdemar José dos Santos – ou “Valdemar Tropeiro”, como prefere ser chamado – tem 89 anos. Nascido no interior do Paraná, o tropeiro viu na ‘lida’ com animais o sustento de uma vida. Valdemar sempre soube que o trabalho era duro e perigoso, mas em 1940, quando começou a aceitar pequenos serviços para guiar os cavalos de uma fazenda próxima para outra, não existiam muitas oportunidades para um garoto de 11 anos.
Hoje, o cavaleiro carrega as marcas dos anos de trabalho pesado exercido em função da profissão. Possui diversas fraturas pelo corpo: dois joelhos quebrados, uma cicatriz na cabeça – escondida pelo chapéu – de um coice de égua prenha, seus pés também são quebrados e há cerca de dez anos teve tétano no pé direito devido a um ferimento com tesoura. Mas, sem dúvida, o mais surpreendente é um furo que atravessa o pé de um lado a outro, feito após cair de um cavalo em uma cerca na qual acabou pisando em um cravo (prego de 10cm). Todos esses ferimentos foram tratados em casa, com “chá de alho”, como descreve sorrindo.
Sem atendimento médico, as fraturas cicatrizaram irregularmente, de forma que não pode mais vestir botas, seu calçado preferido. “Só tem um tipo de bota que posso calçar, que é uma que um amigo sapateiro faz. Ele mede e deixa certinho para usar”.
Sempre sorridente, orgulha-se do que diz ser seu maior tesouro: os amigos e a família. “Em qualquer lugar que você vá, é preciso saber entrar para saber sair. Por isso sou tão querido”, diz. A vontade de estar perto das pessoas que gosta e ter sempre alguém para conversar é tamanha que foi o que o motivou a sair de uma casa que alugava na área rural para, aos 80 anos, construir uma nova residência às margens da rodovia, próximo da entrada da cidade de Siqueira Campos/PR, onde o movimento e o tráfego de pessoas é alto.
Dali, de sua varanda, ele pode ver as pessoas se aproximando de longe e suas dezenas de amigos e conhecidos o cumprimentam ao passar — cumprimento este que é correspondido imediatamente com acenos de mão e um grito surpreendentemente forte para alguém com a sua idade: “Aê, companheiro!”.
Seu Valdemar parece ter saído diretamente de uma música do Teixeirinha, é um nato contador de histórias. O Tropeiro Velho gosta de ‘prosear’. No fogão à lenha aceso, que aquece a casa de madeira nas noites frias, sempre tem uma chaleira de água fervendo para tomar um mate quando o próximo ‘companheiro’ chegar — o que geralmente acontece a cada duas horas. São amigos que chegam, falam sobre o dia, a vida; e depois de uma cuia de chimarrão, levantam-se e vão embora.
Na casa, mora apenas com sua esposa dona Maria, que cuida da comida e dos remédios, enquanto ele faz alguns ‘rolos’, comprando e vendendo ‘tralhas’ e cavalos para ganhar um dinheirinho extra. Valdemar nunca trabalhou de carteira assinada. Na verdade, sequer tinha documentos com exceção da certidão de nascimento e casamento. “Eu nunca votei e nem me vacinei, só consegui a certidão de casamento porque um amigo meu trabalhava lá”. Ainda assim, aos 82 anos, Valdemar conseguiu se aposentar, graças a um amigo fazendeiro conhecido na região que disse para as autoridades que o tropeiro trabalhou em sua fazenda durante muitos anos.
Pai de 7 filhos, ele afirma que nunca bebeu nem fumou durante toda a sua vida. O motivo é ter desenvolvido um trauma da bebida alcoólica e do cigarro após ser obrigado a carregar seu pai dos bares para a casa durante a adolescência. “Vendo aquilo ali, meu pai naquela situação, eu prometi pra mim mesmo que nunca ia fumar, beber ou jogar”, conta.
As ‘tropeadas’ duravam longas semanas. Numa de suas maiores viagens, pegou uma tropa de 100 mulas xucras no Rio Grande do Sul e entregou todas domadas e mansas em Sorocaba-SP. A viagem durou quase três meses e foi acompanhada apenas de mais um tropeiro e um menino de madrinheiro. As dificuldades iam do terreno ruim, falta de pasto, o mau tempo como chuva e frio até indígenas hostis protegendo as terras.
Alguns de seus filhos ele foi conhecer apenas quando já estava com meses de vida. “Eu fazia o que era preciso para conseguir ganhar um dinheiro e dar de comer à família”.
Longa como uma ‘tropeada’, o tropeiro diz que é a sua vida. Hoje, suas ambições são simples. “Agora que eu estou parando de lidar com os animais, só quero poder ir visitar meus companheiros de lida”, conclui.
Ao me despedir, Valdemar Tropeiro me faz um último pedido inusitado: “Posso te pedir uma coisa antes de você ir? Não precisa se lembrar de mim, é só não me esquecer, companheiro!”.
* Tropeiro de Verdade é uma música feita pelos filhos de Valdemar em homenagem ao pai. Disponivel em: https://www.youtube.com/watch?v=93bKvAjJCpE