Por Cultura Plural
“Cada um tinha uma gaiota, e nós pegávamos a gaiota e saíamos… Às vezes saía oito horas, voltava meio dia. Às vezes saía sem almoço… Ali a gente ganhava R$5, R$10. Hoje seria cinquenta centavos no dia, e aquele cinquenta centavos a gente ia guardando, guardando para [ao somar tudo] no final de semana, conseguir ajudar na casa”.
O primeiro trabalho de Ester da Silva Santos foi como catadora de recicláveis. Logo aos dez anos, a menina que foi rejeitada pela mãe ao nascer viu a necessidade de conseguir algum dinheiro para ajudar em casa. Ela e mais quatro crianças: Netio, Fernandinho, Dorli e Paulinho percorriam as ruas da Vila Palmirinha, Vila Isabel e São José em busca de utensílios que os fizessem ganhar alguns trocados.
O grupo saía sempre junto para recolher os materiais e dividia tudo que era conseguido nas suas sacolas, chamadas de gaiotas. Se achavam um chinelo, havia brigas para saber com quem ficaria… Se fosse de uma cor bonita então, havia uma disputa. Além disso, se encontravam objetos diferentes, com valores simbólicos para eles, era sempre um pequeno conflito, já que as cinco crianças gostavam de coisas que não tinham.
O grupo, batizado de Cooperativa dos pequenos, era muito unido e leal entre si. Mesmo muito pobres, com dificuldades de todos os gêneros e naturezas, as crianças se ajudavam e repartiam tudo que conseguiam naquela vida difícil e precoce. Sejam os objetos encontrados nas estradas que passavam, sejam as vontades e a esperança de conseguir uma vida melhor e mais digna.
A mãe biológica da única menina daquele grupo ficava em casa para cuidar do outro filho, que era doente, e esperava naquela criança um alívio financeiro. O marido, que trabalhava com balaios, não conseguia sustentar sozinho a família e, por isso, a ajuda vinda da filha mais velha era essencial.
Ester andava pelos bairros em busca de objetos e de comida, sem calçados, já que o único tênis que tinha era para ir à escola. Ela, o irmão e as duas primas eram outro grupo que sempre ia a lugares oferecer trabalho em busca de alimentos. E faziam sempre um mesmo trajeto.
Passavam na padaria da dona Nena, onde conseguiam uma sacola de pão. Depois, iam ao laranjeiro ajudar a descarregar os sacos da fruta para, em seguida, ganhar uma sacola de laranja. Além desses dois lugares, as crianças iam também até a feirinha da São José, onde ajudavam os feirantes a selecionar as verduras que seriam vendidas, daquelas que estavam ‘machucadas’. Eram estas com as quais o grupo ficava.
Ao chegar em casa, o grupo tirava tudo que havia coletado durante o percurso, para separar o que seria reciclado daquilo com o que ficariam. O final do dia sempre era esperado, visto que na gaiota havia mais espaço para sonhos e vontades do que para materialidades.
Durante cinco anos, Ester trabalhou com recicláveis. Aprendeu muito com a vida na rua. Aprendeu a correr do atual conselho tutelar, que antigamente circulava em um fusca branco e preto. Aprendeu a dar valor ao dinheiro. Aprendeu também o prestígio da amizade, da união e da solidariedade. Aprendeu que sozinha “não fazemos nada”.
Depois de ser catadora, ela foi babá durante um ano e nesse mesmo período conheceu o atual marido. Aos 16 anos, tornou-se mãe e casou. Aprendeu novas lições. Agora, uma bebê dependia dela e do companheiro. De início, enquanto se ajeitavam com trabalho e moradia, ela morou com a sua sogra por um ano, até o casal conseguir uma casa no Santa Mônica, onde vive até hoje.
A primeira filha, Francisleine, hoje com 32 anos, vive nos fundos do terreno da mãe e é dona de casa, assim como dona Ester. A segunda filha, Frabiola, com 29 anos, tem um curso técnico em Enfermagem e trabalha fora. A mais nova, Morgana, 23, que vive com ela, é safrista e recebe um salário de R$1280,00. Dinheiro este que é usado pela família para sobreviver.
A mudança para o Santa Mônica também trouxe uma notícia não tão boa para Ester. Trabalhando como diarista até 1994, ela descobriu, na época, que tinha lúpus e ficou em tratamento até 1999. Desde então, parou de trabalhar, já que a doença era eritematosa, mas acabou se transformando em sistêmica.
Além de ter que ficar em casa por problema de saúde, hoje em dia Ester não trabalha porque cuida da irmã do marido. A cunhada, com 58 anos, tem uma doença mental que restringe sua capacidade cognitiva a 3 anos de idade e, por isso, precisa de cuidados específicos. O marido, até à época da entrevista, estava desempregado havia três meses. Ele trabalhava na construção civil, mas acabou sendo dispensado.
A vida no bairro Santa Mônica, no entanto, nunca foi das melhores. Quando chegou à região, entre 1993 e 1994, o local era sem energia elétrica, asfalto e havia pouca água. Postes e transporte público só foram conseguidos com a pressão da comunidade aos órgãos municipais. Havia casos em que gestantes precisavam andar mais de um quilômetro a pé até chegar a um orelhão distante e ligar para os serviços de emergência.
Com tantas dificuldades advindas da falta de estrutura do bairro, não é difícil imaginar que o interior da casa também fornecia condições precárias. Houve momentos em que Ester e a família passaram fome, ou períodos em que a comida que existia na casa era somente arroz com ervilha, ou arroz com pombinha frita.
Mas antes mesmo da vida ter essa configuração, Ester teve uma origem muito pobre e com muitas lembranças marcantes. Nascida na casa da patroa da mãe, em 1971, na Vila Palmeirinha, em Ponta Grossa, ela foi rejeitada pela própria genitora até os cinco anos de idade, sob a justificativa de que não era menino, como a mãe queria.
A senhora, para quem a mãe de Ester trabalhava, cuidou da menina até os primeiros cinco anos, quando a mãe biológica resolveu assumir a criança, pois havia casado com um senhor. O padrasto então a registrou como filha legítima e a família passou a viver junta até 1985, ano em que ele faleceu, provocando uma mudança brusca naquele círculo.
A mãe não podia trabalhar fora porque cuidava do filho mais novo. A única então que poderia sustentar a casa era Ester, que começou a conhecer o mundo na sua primeira década de vida. Por conta do trabalho, não teve a oportunidade de concluir nem o ensino fundamental, interrompendo seus estudos na 6ª série, do Colégio Estadual Dr. Epaminondas Novaes Ribas.
O universo da faculdade, então, sempre esteve distante para ela. Bem como para suas três filhas. Se pudesse estudar, Ester se envolveria com algo que ajudasse pessoas portadoras de deficiências, já que gosta de apoiar essa parcela da população, porque se sente confortável se comunicando e oferecendo melhorias a quem mais precisa.
Hoje, com 48 anos, ela depende da filha mais nova para manter a casa. Com o marido, a cunhada, a filha, dois gatinhos e dois cachorros, ela não lamenta pela sua condição atual. Pelo contrário, diz ser muito grata pelo que tem e onde está. Em vista da sua vida sofrida, Ester é uma senhora muito sorridente e alto astral. Mesmo passando por momentos muito complicados, ela avalia que o nosso dia a dia possibilita muitos recursos, diferentemente da época em que era criança.