Com licença moça, você poderia me arranjar algumas moedas para eu poder comprar uma marmita? Estou com muita fome, minha ultima refeição foi ontem no almoço, pois ganhei de uma senhorinha alguns trocados. Perdoe-me se lhe assustei, mas eu não sei realmente como chegar numa pessoa para pedir esmola sem que ela se assuste e eu me envergonhe.
As pessoas que me veem andando pela rua mal vestido, cheirando mal, pedindo dinheiro, muitas das vezes bêbado ou entorpecido com algo ilícito, sempre com fome, mendigando por um simples almoço, não sabem o porquê de eu estar ali naquela situação. Você realmente acha que eu gosto de viver assim? Nunca parou para pensar em milhares de situações que poderiam ter acontecido com qualquer um? Pois bem, repense em seus atos. Não venho até aqui para criticar a índole de cada um, mas sim, para abrir os olhos.
A minha história é basicamente como a de muitos que acabam indo “morar” na rua. Não consigo utilizar o termo “morador de rua”, pois para mim, morar, significa ter um lar com uma família que te ama e te espera todos os dias. Não me orgulho disso, o que sinto é basicamente uma mistura de vergonha, ódio e pena de mim mesmo. Eu poderia contar minha vida aqui, mas isso proporcionaria um livro enorme e cheio de fazes ruins. Um livro, diria eu, que ninguém gostaria de ler.
A minha conturbada adolescência foi o marco inicial desta vida amaldiçoada que
tenho hoje, mais exatamente a partir dos meus dezesseis anos. Eu não faltava aulas, eu tinha notas boas, eu era popular na escola, eu beijava várias meninas, eu era um menino muito bonito. Mas meu problema não era esse, meu problema era em casa. Eu tive um pai alcoólatra que saía do trabalho e passava no bar toda tarde antes de ir para casa. Ao chegar em casa, aquele homem machista exigia de minha mãe que a casa estivesse limpa e que o jantar ainda quente repousasse sobre a mesa à espera dele. Homem este, sem valores morais, sem dignidade, sem respeito, mais um daqueles que chegam em casa com marcas de batom na camisa e ainda se acham no direito de bater em uma mulher pelo fato de ela ter ficado brava com a situação e querer alguma satisfação.
Após algum tempo vendo isso e me sentindo impotente com esta situação, eu
agredi meu pai, mas agredi tanto que acabei o matando. Foram chutes e socos sem fim até a sua respiração parar por completo. Minha mãe em desespero, não sabia o que fazer, ela se perguntava o tempo todo em voz alta se chamava a polícia ou se escondia o corpo para que meu futuro não fosse interrompido por conta do incidente. Tomei a decisão mais inimaginável do mundo, eu mesmo chamei a polícia e contei o crime que eu acabara de cometer contra meu próprio pai.
Com a chegada das viaturas em frente a minha casa, minha mãe teve um colapso e desmaiou. Os policiais achavam que eu estava tentando mata-la também e imediatamente me imobilizaram e algemaram. Eu estava simplesmente tentando reanimá-la após o desmaio, mas não obtive sucesso, pois fui impedido, muito menos os policiais e ela morreu ali mesmo. Fui saber da noticia da morte de minha mãe somente depois, na delegacia, onde eu estava sendo interrogado, foi aí que desabei em choro por não compreender muito bem o que tinha feito, muito menos por não poder voltar no tempo e desfazer tudo.
Em meio ao meu interrogatório, por mais que eu afirmasse que havia matado meu pai para defender minha mãe das constantes agressões que ela sofria em casa, ninguém acreditava, pois eu fui pego na sena do crime em cima de minha mãe e com o corpo de meu pai ao nosso lado desfigurado de pancadas. Fui interrogado mais de sete vezes aquela noite, mas ao menos alguns copos de café e bolachas me foram dadas para suportar a madrugada sem dormir.
Passei três meses detido num abrigo para menores infratores até que meu julgamento foi marcado. Meu estado de nervosismo aumentava a cada dia que se passava, pois eu sabia que não havia testemunhas oculares para me defender, somente vizinhos que haviam ouvido a gritaria no dia do ocorrido. E, no dia 1º de maio de 1989, fui a julgamento. A juíza tinha um semblante sério e horripilante, tive pesadelos com ela por muitas noites após esse dia.
Condenado a 27 anos de prisão por duplo homicídio doloso, sem chão, sem rumo, aceitando esta condição, passei 15 anos encarcerado e fui solto por bom comportamento. Com exatos 31 anos de idade, recém-liberto da prisão, sem casa, sem família, sem amigos, sem ninguém para ao menos ouvir minha versão da história, me tornei “morador de rua”, usuário de drogas e álcool.
Por mais que eu tente ser contratado para qualquer tipo de trabalho, e olha que eu tentei inúmeras vezes, eu jamais consegui, a não ser alguns bicos limpando calçadas ou terrenos. A nossa sociedade não está apta para receber e incorporar, pessoas que passaram por um sistema de reabilitação social, no cotidiano dela. Mas isso é só mais uma das nossas tristes realidades desiguais desta sociedade hipócrita.
Eu lhe peço um milhão de desculpas por ter ficado aqui esse tempo todo falando de minha vida, mais precisamente, desabafando em seus ombros. Também lhe agradeço por ter me doado esta singela nota de dinheiro, que já é mais do que suficiente para pagar meu almoço. A senhora sabe que com o troco eu, provavelmente, vou beber ou me drogar, mas seu coração é bom e compreensível. Que deus abençoe você e sua família. Como não tenho família, desejo do fundo do meu coração que todas as outras deem certo, principalmente para que ninguém tenha que passar pelo que passei. Tenha um bom dia e até mais!
Mikulis, S. A.