Por Cultura Plural
Era uma manhã quente para o outono ponta-grossense. De calças largas, moletom e tênis parecíamos estudantes comuns, prontos para mais um dia de aula. A diferença era que o local em que estávamos não era a universidade. Muito menos a lanchonete, em que tomamos inúmeros cafés e reclamamos de nossa vida burguesa.
Chegamos de caminhonete na cadeia pública Hildebrando de Souza, lugar reservado para a ressocialização de 207 seres humanos. Porém, cerca de 630 – antes conhecidos como homens e mulheres; agora tratados como animais – vivem na casa de detenção, que está com uma lotação 304% maior do que sua capacidade suporta.
Para nós era mais uma sexta-feira, para os presidiários era o dia do “sacolão”. Diversas mães, filhos, irmãos, primos – enfim, familiares – estavam na frente do “Cadeião”, esperando sua vez de adentrar pelos dois portões de ferro que asseguram o local. Mesmo com as três refeições diárias (café-da-manhã, almoço e janta) oferecidas pelo Governo Estadual, os sacolões complementam a alimentação dos encarcerados, pois “a gente entende que para uma pessoa adulta, que precisa de um reforço alimentar, essa comida extra é necessária”, conta o vice-diretor da cadeia pública, Rodrigo Furman.
Entregamos nossas identidades e bolsas – apenas um celular pode entrar, já que as entrevistas seriam gravadas no dispositivo. “Furamos” a fila dos familiares e atravessamos os portões. Ao olhar para trás, avistamos muros e cercas. Mais nada. Estávamos tão isolados quanto os que cometeram os delitos. A diferença é que poderíamos sair a hora que sentíssemos vontade.
Orange is the new black
Laranja. Uniformes. Mulatos. Alguns presos, com suas camisas e calças alaranjadas, passaram por nós enquanto chegávamos no pátio. Nos fitavam com desconfiança, porém com grande curiosidade. Aliás, seus olhares pareciam que nos desnudavam. Eram tão fortes e, ao mesmo tempo, infantis, pedindo ajuda. A partir desse momento, entendemos o porque da utilização da vestimenta larga que o vice-diretor do presídio pediu para que usássemos.
Sem condições financeiras de separar os presidiários, os que trabalham ou estudam acordam no mesmo horário que os que estão no ócio. Pontualmente às 8h. Dentro do Hildebrando de Souza, 18 presos estão estudando, na busca de um diploma de ensino médio, e 21 estão fazendo cursos profissionalizantes. Assim, apenas 39, das 630 pessoas encarceradas, fazem parte do sistema de ressocialização, que é um direito do detento disposto no artigo primeiro da Lei de Execução Penal, a qual “tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.”
Além desses 39 indivíduos, outros 12 estão trabalhando na construção, na jardinagem e outros serviços simples dentro do “cadeião”. De acordo com o vice-diretor do Hildebrando, Rodrigo Furman, eles foram escolhidos na triagem que é feita quando o preso pisa pela primeira vez no ‘xadrez’. “Nós conversamos com eles e vemos quais foram os atos cometidos, dependendo colocamos direto nesse local separado, não nas galerias”, revela.
Existem dez galerias dentro do presídio, tirando a triagem. Antes de entrarmos nas celas, passamos por um raio-x antigo, fomos revistados e encaminhados para uma porta cheia de barras. Quando o agente penitenciário abriu a galeria, a primeira sensação foi de frio, medo. O cheiro de podridão do local adicionava mais solidão à atmosfera.
A primeira imagem que vimos foi a de um detento, falando no telefone, separado por um vidro, algemado. Antes de virar para a esquerda, aonde encontraríamos outros presos, ouvimos gritos animados: “Aeeee, hoje tem visita!”. Ao entrarmos nas celas, nos deparamos com homens abarrotados, segurando as barras e olhando para nós silenciosamente, como se fossemos uma especiaria nunca vista.
A sujeira do lugar, os corredores cheios de indivíduos deitados, redes colocadas pela falta de espaço, as celas que foram planejadas para acomodar quatro detentos, agora tomadas por até vinte. Uma escuridão, em que apenas poderiam ser vistos os olhos gatunos no fundo da galeria.
Sardinhas enlatadas
De acordo com a promotora titular da Vara de Execuções Penais, Daniela Garcez, apenas os presos que estão esperando pela condenação em regime aberto, semi-aberto ou fechado, deveriam estar no Hildebrando. Porém, cerca de 200 detentos do presídio já receberam sua sentença e estão esperando a transferência para as penitenciárias do Estado. Para Daniela, o que falta para diminuir a superlotação dos presídios brasileiros, não apenas em Ponta Grossa, são políticas públicas de prevenção, pois “é como enxugar gelo; não basta construir inúmeros presídios, já que nunca será suficiente devido à grande demanda por vagas”, ressalta.
Na véspera do feriado de Páscoa, na quarta-feira (16), 2014, alguns presos iniciaram uma rebelião no “Cadeião” e fizeram de refém um agente penitenciário. O advogado de direitos humanos da OAB, João Maria de Góes – que ficou das 10h até as 19h conversando com os presos, no meio da revolta – conta que o principal problema apontado pelos detentos era a superlotação, que acarreta na falta de higiene, alimentação e outros itens básicos para o bem-estar de uma pessoa. Essa foi a segunda revolta dos presidiários, em apenas um ano.
Na tentativa de desafogar as delegacias do Paraná, o governo está em um processo de retirada de todos os presos desses locais, já que nelas os detentos não têm estrutura e a sua função de investigar e fazer a instrução do inquérito policial parou de ser seu foco. Com isso, cadeias como o Hildebrando superlotam, fazendo com que cada presidiário fique em média de quatro a seis meses esperando por uma sentença condenatória, conta o advogado.
Ao subir os degraus para o telhado do presídio, aonde fica a guarita com um vigia, andamos pela passarela que divide os homens das mulheres. Lá de cima parecia que estávamos em um zoológico, observando os animais enjaulados. O guarda ao nos ver solta: “agora vocês sabem porque não devem fazer nada contra a lei, né?”, fala com um sorriso malicioso. Sabemos, e ali de cima parecia que isso ficava ainda mais claro, olhando para aquele cubículo aos nossos pés e a cidade ao nosso redor.
A liberdade
A cada relato, aumentava a ansiedade diante de uma realidade trancada, mofada e escura. A solidão que vertia de cada canto, agora se intensificava com as palavras regidas pela saudade e a esperança de quem dedicou a maior parte dos seus dias a planejar uma vida que recomeçaria depois que a sentença terminasse. A sensação que dava era de que recolher aquelas falas trazia a eles um efeito anestésico, como se eles tivessem a necessidade de desabafar para alguém. Alguém que não tivesse relação com aquele lugar.
“A gente sente falta de tudo que a gente tem, de estar com a família, de almoçar onde quiser, de trabalhar e voltar pra casa pra tomar um banho, viajar no final de semana. Eu sinto falta disso, de ir para onde eu quiser, de desfrutar da minha liberdade”, fala o presidiário de 23 anos, com uma pena de 14 anos de prisão por homicídio. Ao tentar ajudar um amigo a sair de uma cilada, na virada do ano de 2011 para 2012, o jovem atirou no carro que os perseguia e atingiu a cabeça do carona. Desde então, nunca mais conseguiu realizar o sonho de estudar em uma universidade. “Eu tinha acabado de passar no ENEM e estava trabalhando em uma mecânica quando descobri que seria preso”, conta.
Mais velho e, supostamente, mais experiente, o presidiário de 59 anos, ex-supervisor de processamento de dados do Banestado, está em medida protetiva por ter perseguido e ameaçado a ex-mulher. Com uma barba de Papai Noel, fala mansa e um rosto de que poderia ser o de um avô de qualquer pessoa ali, ele comenta que o que menos gosta dentro da prisão é de estar em uma situação que não depende de você e pretende sair do Brasil, pois “muitas coisas passam pela nossa cabeça dentro da cadeia e uma delas é que ninguém vai nos contratar e querer ver nossa cara”, relata.
A garantia de que um indivíduo que saia da cadeia tenha aprendido com a punição a conviver em sociedade – o que torna-se cada vez mais raro, levando em consideração a atual realidade carcerária – é diretamente proporcional à garantia de que o preso, mesmo que íntegro e absolvido de seus crimes, tenha oportunidades iguais, como um emprego digno.
A maior dificuldade enfrentada por um condenado ao ser solto é a ressocialização, que ajuda a integrar o indivíduo à sociedade. É como se ele saísse de um lugar onde é marginalizado, em situações desumanas, e fosse para o mesmo destino, porém agora em liberdade. Antes trancado para dentro, agora trancado para o lado de fora. Durante o passeio por entre as celas, avistamos uma saleta cadeada. Era a escola dos presos. Naquele pequeno lugar são ensinados detentos de várias idades que tenham pouca ou nenhuma formação do Ensino Fundamental e Médio, e até mesmo cursos técnicos.
Visitamos a enfermaria logo depois; outro cubículo. À primeira vista, um lugar improvisado com um cheiro muito parecido com o de um banheiro de parque de diversões, úmido e sujo. Os remédios separados dentro de envelopes esperavam ser distribuídos em cima da mesa. Ali se consultam detentos com vários quadros de saúde, até psiquiátricos. No “cadeião” existem cinco detentos com o vírus HIV e muitos outros em tratamento com remédios controlados.
Não é difícil compreender a importância de um sistema carcerário de qualidade. Não basta isolar um indivíduo privado de toda e qualquer forma de dignidade, com a intensão de reeducá-lo. É necessário atender a algumas particularidades da vida pessoal de cada condenado, visando regrá-lo a par da ordem social e prepará-lo para um ressocialização, uma vez que muitos dos que hoje estão detidos, amanhã estarão se reintegrando na sociedade.
Sob a perspectiva constitucional da Lei nº 7.210/84, Lei das Execuções Penais, deixa-se bem clara a reinserção social dos detentos. Para isso, são necessárias condições dignas de suporte e higiene. A ressocialização é um processo delicado que quando não compadece, na maioria das vezes, acaba sendo a causa de novas tentativas de infringir a lei. A educação também é uma das bases, se não a principal, de acordo com a promotora da Vara de Execuções Penais, Daniela Garcez. Mas como atender toda a demanda?
A situação do Hildebrando está o oposto do ideal. O estresse interno quanto à superlotação e as formas precárias de higiene são as causas de rebeliões, que colocam em risco não só a vida de funcionários e detentos, como também da população que mora em volta. Sem contar os danos causados às famílias dos próprios detentos que acompanham a situação de longe e, muitas vezes, esperam pelo pior.
Famílias encarceiradas
Ao fecharem os portões às nossas costas, nos deparamos com a fila de parentes e amigos de presos, ainda maior. A ansiedade era visível em seus rostos e transparecia pela impaciência de cada um. Não precisamos nem pedir, dona Nilce Aguiar, 45 anos, veio até nós. Com o filho de 21 anos preso há 10 meses, acusado de tráfico de drogas, dona Nilse disfarçava o cansaço com um largo sorriso. Contudo, indignada com a realidade do “cadeião”, imediatamente pôs-se a falar. “A realidade lá de dentro é uma tristeza, não tem banheiro, não tem vaso, dormem no chão, não é toda comida que a gente traz que pode entrar. É um descaso com a gente, pois toda a semana enfrentamos filas enormes e aquela revista constrangedora”, conta.
O presídio ainda não tem a tecnologia de uma máquina de raio-x, igual a dos aeroportos internacionais, nas revistas corporais dos visitantes e ainda utilizam o método da cadeira detectora de metais e os agachamentos em cima do espelho, seguidos de “tossidas” para tirar qualquer dúvida de que nenhum material está no interior dos indivíduos que por ali passam. Crianças acima de 12 anos, meninos ou meninas, também precisam ficar nus, agacharem-se e tossirem. Tudo na frente de um guarda, seja esse homem ou mulher.
As visitas íntimas não são providas de privacidade, já que o Hildebrando não tem a estrutura necessária para a construção de um motel para os condenados. Geralmente os presos evacuam alguma cela e um lençol estendido é o mais aconchegante que um casal pode ter. Enquanto isso, familiares conversam nos corredores das galerias, ignorando a ação dentro do “xadrez”.
Diante da indignação daquela mãe, ficou evidente que a realidade de dentro da cadeia tem reflexos aqui fora e o quanto isso pode ser traumatizante. “Ninguém gosta de ficar lá dentro, ele não vê a hora de sair e nem olhar para trás. Ninguém gosta de perder a liberdade assim”, comenta dona Nilce. Nem a liberdade, nem a dignidade.
Saindo do local, muitas dúvidas e questionamentos pairaram sobre nossos pensamentos. Claro que políticas públicas de prevenção resolveriam o caso a longo prazo. Mas o que há de mais urgente agora? Como sanar essas precariedades sem prejudicar tantas pessoas? Como encarar que essa realidade é um problema nacional e que aflige a dignidade humana, trazendo problemas psicológicos e sociais graves a toda sociedade?
Voltamos para o conforto dos nossos cafés, estudos e namoricos. Tínhamos nossas dúvidas sobre o que seria feito com relação ao Hildebrando. A única certeza é que a experiência de ver a morte e o medo estampados nos rostos daquelas pessoas jamais seria apagada da memória dos dois universitários burgueses.
Reportagem de Marina Demartini e Yago Massuqueto