Por Cultura Plural
Créditos: divulgação do espetáculo no Instagram Por Ester Roloff
As Mil e Uma Noites é uma história clássica composta por uma coletânea de contos populares oriundos do Oriente Médio e do sul da Ásia. Os primeiros manuscritos da obra são do século IX, mas apenas em 1.700 a história chegou ao Ocidente depois de ter sido traduzida para o francês. Existem inúmeras versões da história, com diferentes interpretações e significados. Em 2023, a SF Escola de Dança realizou um espetáculo reinterpretando a obra nos teatros da cidade. Agora, em 2025, a coreógrafa Gabriela Begali adapta uma das coreografias do espetáculo para participação em competições, incluindo o Setembro em Dança, realizado em Ponta Grossa.
Para entender a coreografia é necessário primeiro entender em que contexto ela foi criada. O espetáculo foi dividido em dois atos, cada um com cerca de uma hora de duração. No primeiro nos é apresentado o reino onde a história acontece, com celebrações da cultura do Oriente Médio e das riquezas daquele tempo. A complexidade das relações amorosas aparece na história quando o sultão descobre que sua esposa o estava traindo, e então toma a decisão que dá início aos tão famosos contos das Mil e Uma Noites. Ele se torna um sacrificador de mulheres, se casa com uma por dia e ao amanhecer as sacrifica, para assim garantir que nunca mais será traído.
A história segue para o segundo ato, onde a protagonista Sherazade aparece determinada a acabar com a violência do sultão ao casar-se com ele. O espetáculo não interpreta nenhum conto da história original, trazendo de maneira abstrata os ensinamentos de Sherazade para o sultão. Inicialmente parece uma decisão questionável contar tão a fundo a história do sultão e ignorar o que tornou a obra famosa, mas ao dar valor e emoção ao personagem que ouve as histórias, o espetáculo também conseguiu dar maior emoção e seriedade para o que era ensinado.
Os coreógrafos realizaram um estudo aprofundado da obra para dividir as histórias de Sherazade em sete portais que o sultão deveria passar para encontrar a cura de sua alma: 1. As inconstâncias da vida, que não são culpa de ninguém além do acaso e das curvas que encontramos pelo caminho. 2. A traição, que enche os corações de vingança e de ira. 3. O legado das famílias, que ensinam sobre a bondade e a força das palavras. 4. O medo e a solidão, que anseiam pela busca do pertencer. 5. A magia inteligente e ardilosa, que desvenda segredos e traz soluções inesperadas. 6. A coragem dos heróis, que nos momentos mais difíceis fazem permanecer a força do espírito humano. E por fim, 7. A esperança que mesmo nas noites mais escuras encontra razões para brilhar.
O grande significado da coreografia final não é construído apenas nos poucos minutos em que ela é dançada, mas durante todo o passar do espetáculo. A coreografia, de nome “Redenção”, representa o momento em que o sultão atravessa os portais e é emaranhado pela verdade de quem ele é e o que fez, encontrando no amor de Sherazade sua cura. A releitura traz paralelos sobre o papel dos personagens e como durante nossa vida nos relacionamos com eles. O sultão representa o masculino, as ações e reações que temos, mas principalmente a maior ação de todas, a de ouvir.
O poder do feminino de Sherazade é a arte de falar, modificar através de palavras o que antes estava doente e obscuro. Ela conta histórias para viver e para trazer vida nova ao sultão. O nome “Mil e Uma Noites” tem simbologia de infinito, pois para Sherazade cada noite era um infinito e o amanhecer significa um dia a mais de vida. É como o narrador do espetáculo destaca sobre a principal lição de Sherazade para o sultão: “Vida, morte, vida. Sobre o que deve viver em nós e sobre o que devemos deixar morrer”. Deixar para trás as dores, tristezas e raiva para deixar viver uma nova versão de nós mesmos.
A coreografia utiliza a música brasileira “A Miragem”, de Marcus Viana, utilizada na novela O Clone, de 2001. Além do desafio de coreografar uma música em português, em que a letra deve ter relevância para a história, ao utilizar uma música tão conhecida a coreógrafa Gabriela correu o perigo de ter a dança ultrapassada pelas memórias que a música poderia despertar no público. Contudo, foi um risco que valeu ser tomado, pois a composição complementa a ideia que se quer passar e engrandeceu o final do espetáculo, sendo o clímax da releitura.
A construção tão detalhada e complexa do espetáculo leva a dúvida quanto ao futuro da obra. Como passar as mesmas emoções que a coreografia final gerou no público sem o contexto da história dentro do espetáculo? É possível transmitir uma história inteira em apenas cinco minutos? Eu, particularmente, acredito que não. O que é possível observar da nova versão da coreografia até agora sugere que grandes mudanças coreográficas não serão feitas, o que deixa o peso do sucesso — ou não — nas mãos dos bailarinos.
A emoção, construída em duas horas através de diversas coreografias, cenários teatrais e um narrador envolvente, passa a repousar na capacidade de interpretação e nos sentimentos que os bailarinos expressarem no palco. “Redenção” deixa de ser uma história transformadora de um sultão no Oriente Médio, para ser a história de mudança de qualquer um na platéia. Fora do espetáculo a coreografia adquire outro significado e ganha a chance de alcançar outras histórias e pessoas.
A coreografia não terá o mesmo impacto no público, mas isso não significa necessariamente que será menos, apenas tocará em lugares diferentes. Ela abrirá uma porta para que o público sinta, através de memórias particulares e individuais, qual a redenção que cada um busca dentro de si.