Por Vitor Lopes
Foto: reproduçãoEm 1964, quando a Ditadura Empresarial-Militar se instalou, os militares prometeram (re)construir um tipo de Brasil. Nascia ali uma promessa abstrata de nação, onde o outro tornava-se subversivo, o problema a ser resolvido.
Inspirados pelo nazismo e pelo sistema de torturas otimizado (principalmente) por Estados Unidos e França, a solução foi dada: a morte foi a grande amante da nossa ditadura.
Para se chegar no Brasil moral, limpo e belo que tanto queriam, era preciso acabar com aqueles e aquelas que mancharam a nação. Não é surpresa dizer que essa mancha tinha raça e classe.
Era preciso descartar o lixo social.
Só que na boca desse lixo, na periferia da mentira criada como norma através do medo e do assassinato, alguns marginais atacaram de volta, revidaram.
E teve um marginal que resolveu usar o medo como ferramenta política. O terror da lembrança e reminiscência de traumas e feridas abertas pra nunca mais serem efetivamente cicatrizadas.
Foi nesse casamento maldito entre militares e o capital que deu-se a luz à Zé do Caixão, um filho amaldiçoado pela sombra do contexto de seu surgimento.
Zé do Caixão é o primogênito do Brasil com vergonha de ser Brasil criado e projetado a ferro e fogo pelos militares. A existência do seu ser é uma afronta à utopia fascistóide da ditadura, pois ela é um lembrete constante de tudo aquilo que é preciso esquecer: subversão, desordem, afronta.
José Mojica Marins criou o seu monstro; e, se a Ditadura Empresarial-Militar atacou fervorosamente o espaço artístico, Zé do Caixão atacou de volta. Os valores morais da identidade brasileira forjados no silenciamento do outro tornam-se piadas de mau gosto para o divertimento de Zé do Caixão.
A cultura cristã hegemônica do Brasil é um parque de diversões para a criatura de Mojica: quando, logo no começo de À meia noite levarei sua alma, Zé do Caixão é repreendido por querer comer carne na Sexta-feira Santa, o que ele faz? Vai caçar o maior pedaço de carne que pode encontrar – nem que seja carne de gente. Com um pedaço de frango em mãos, cada mordida é saboreada como última refeição enquanto vislumbra uma procissão católica de sua janela.
Zé do Caixão gargalha.
Mas nem tudo é brincadeira. Seu trabalho como coveiro de uma pequena cidade supersticiosa é um empreendimento sério. Tão sério que o próprio Zé do Caixão faz suas vítimas para serem veladas e encaixotadas pela eternidade.
Ora, se nesse capitalismo tão panfletado pelos militares a única resposta para um futuro melhor é o trabalho como senhor de tudo, então por que não considerar a morte um investimento profícuo? O que Zé do Caixão faz é só dar um empurrãozinho, como bom empreendedor que é, nos seus clientes e transformá-los em clientes para a vida eterna.
Despido de moralidades e normas, o coveiro é a lembrança das contradições. Zé do Caixão se diverte com as fábulas cristãs, pois vê os mesmos rostos que participam da procissão santa na Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Os costumes cristãos são o lugar comum da conivência para Zé do Caixão; é isso que sua risada nos remete. Assim como o seu empreendimento da morte que nos lembra a sina do capitalismo.
Para além da contradição, Zé do Caixão também é uma caricatura: um frankenstein tecnicista. Para toda crença cristã e superstição popularesca, a criatura de Mojica tem uma única resposta: a razão pura da cientificidade. Tal pai, tal filho – da cria dos militares com o capital, era esperado uma educação baseada no cientificismo que nega realidades e visões outras.
Na busca incessante pela concepção do anticristo, a denúncia debochada tem em foco a caricatura de um Brasil que busca se desvencilhar do que é popular a fim de criar um novo brasileiro do zero; um popular aristocrático e hipotético: um novo povo construído e constituído pela lente elitista e prepotente que nega as particularidades do próprio país para tornar-se um espelho, ou melhor, uma vitrine para que estadunidenses e europeus se sintam em casa. Um verdadeiro pesadelo distópico, onde a nossa identidade é ceifada.
O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida. O que é a existência? É a continuidade do sangue. O que é o sangue? É a razão da existência.
Como a Morte de Bergman que prenuncia o destino final de tudo e todos, Zé do Caixão é também um lembrete: o tecnicismo que mata, o subversivo como resistência recorrente, a cicatriz profunda do novo Brasil criado pelos militares – “O Brasil é o pai da criança natimorta! Brindemos! Anauê”.
A genialidade de Mojica vai além de apenas um filme: Zé do Caixão sempre volta. Talvez seja imortal, ou talvez seja incapaz de morrer até que os vestígios deixados pela Ditadura Empresarial-Militar sejam todos resolvidos.
Até lá, seu desprezo pela vida sempre estará em ressonância com seus irmãos – os outros filhotes da ditadura.