Por Vitor Lopes

[…] um dia, logo antes da filmagem começar, os três diretores-assistentes que a Daiei tinha designado vieram me ver na pousada onde estava hospedado. Me perguntava qual poderia ser o problema. Acontece que eles acharam o roteiro desconcertante e queriam que eu o explicasse. “Por favor, leiam-no de novo mais cuidadosamente”, disse a eles. “Se vocês o lerem diligentemente, vocês deverão ser capazes de entendêlo, porque foi escrito com a intenção de ser compreensível”. Mas eles não desistiriam. “Cremos tê-lo lido cuidadosamente, mas ainda assim não o compreendemos em absoluto; eis por que gostaríamos que você o explicasse para nós”. Devido à sua persistência, dei a eles esta simples explicação: Seres humanos são incapazes de ser honestos consigo mesmos sobre si mesmos. Eles não podem falar sobre si mesmos sem embelezamento. Este roteiro retrata tais seres humanos – uma espécie que não pode sobreviver sem mentiras que façam eles sentirem que são pessoas melhores do que realmente são. Ele até mesmo mostra que esta necessidade pecaminosa por falsidade lisonjeira vai além do túmulo – mesmo o personagem que morre não pode desistir de suas mentiras quando fala aos vivos através de um médium. O egoísmo é um pecado que o ser humano carrega consigo desde o nascimento; é o mais difícil de redimir. Este filme é como um estranho pergaminho que é desenrolado e exibido pelo ego (Kurosawa, 1983, p.135).
Aviso de gatilho: violência sexual.
Começo a análise de Rashomon com essa breve anedota do próprio diretor do filme, Akira Kurosawa, pois a entendo como uma excelente ilustração do espírito da obra e do seu contexto histórico (tanto da obra quanto do autor). Comumente, o que se destaca sobre Rashomon é a contradição de narrativas – o que transbordou para além do cinema, com o “efeito Rashomon” utilizado juridicamente, antropologicamente – e o ceticismo de uma época ferida recentemente por promessas esfareladas.
Mas a desorientação e a falta de esperança cravadas no âmago da película fílmica encontram explicações internas e externas à narrativa ainda mais profundas.
Rashomon é o nome do portal que, na Era Heian (794-1192), situava-se na entrada principal da capital, atual Quioto. Estamos falando dos últimos momentos do século XII no Japão, quando a Era Heian perdia forças a cada dia que passava. Poderes militares e políticos autônomos do governo central aumentavam seus poderes nas províncias, causando inúmeros confrontos por toda capital – Heian-Kyo. Como se não bastasse as violências humanas, a criminalidade e rebeliões, incêndios e terremotos também assolaram o território japonês. É como se o “fim da lei”, profetizado pelos budistas, enfim chegasse. Eis o pano de fundo da obra ficcional.
Kurosawa, séculos depois da Era Heian, viveu um Japão diferente, mas com problemas parecidos: a ocupação do território japonês após a Segunda Guerra Mundial, um país materialmente devastado e quebrado e espiritualmente perdido com a sua autoridade, até então tida como sagrada e eterna, morta.
Desorientação e falta de esperança, tão certos e presentes como as geadas do outono recém chegado.
É nesse espírito ferido que o enredo se forma, e é por ele transformado.
O que Kurosawa expõe ao afirmar que os humanos são “incapazes de ser honestos consigo mesmos sobre si mesmos” é o próprio âmago de seus personagens. Desnuda a máscara de cada um, o comportamento perante o mundo e suas ações ativas nesse mundo.
A trama é simples: um assédio sexual e um suposto assassinato são contados através de vários flashbacks, os quais, por sua vez, manifestam relatos distintos desse crime conforme vivenciado ou lembrado por quatro testemunhas principais (quem conhece o filme sabe da existência de outras duas personagens que participam do ocorrido, mas que não vou comentar aqui por serem secundárias): um lenhador (sem nome, o contador da história), um bandido chamado Tajomaru, um samurai chamado Takehiro e a sua esposa, Masako. Da simplicidade do palco montado surge a complicação da ação humana: cada depoente conta sua versão, acentuando a participação pessoal nos fatos a fim de depreciar os outros relatos. A chuva torrencial que cai sobre o portal de Rashomon leva consigo a maquiagem e desvela (ao menos tenta) o que tenta se esconder. Da violência sexual emerge a possibilidade de um ato consensual; do assassinato irrompe um suicídio. Nem mesmo os flashbacks são de confiança: ora, o samurai morto é testemunha oral do seu suposto assassinato por intervenção de um médium que coleta sua versão postumamente. Ainda, os flashbacks são recordações do lenhador sobre o que aconteceu, isto é, o que vemos pode ser apenas uma imaginação projetada do que pode ter sido.
Mesmo com tudo sendo exposto, ficamos cada vez mais distantes de qualquer resposta satisfatória sobre o ocorrido e sobre as perguntas que a trama lança indiretamente para nós, ansiosos pela verdade – o que, de fato, é essa verdade que buscamos? Nossas memórias são confiáveis? Existe relato sem pressupostos singulares e sem ideologia?
A vontade de Kurosawa não é responder categoricamente cada uma dessas perguntas, mas sim evidenciar as profundezas da alma humana. A chuva impetuosa recorrente do início ao fim da exposição do ocorrido pelo lenhador é um dos elementos que invade o corpo das personagens, passando por carne e ossos, e transmite a nebulosidade da alma de cada um. Outro elemento de exploração da alma é a floresta onde os crimes foram cometidos: aqui, ela se apresenta com um caráter místico, onírico, onde a “normalidade” deixa de ser uma constante da “civilização” humana – a falsa dicotomia entre humano x natureza é propositalmente colocada em Rashomon como forma de explicitar a falha do entendimento simples de alternativas duais, entre o bem e o mal.
Quando a floresta se apresenta, tudo ocorre. Do acontecido ao relatado, do que foi visto e do que foi julgado. Cada lembrança do passado vem acompanhada de uma mudança brusca do que realmente aconteceu. Até que descobrimos o julgamento de Tajomaru – do qual o lenhador participou como testemunha ocular.
Por fim, descobrimos que, além da alternância de relatos, nosso locutor também escondeu informações (tanto do público quanto dos juízes no julgamento), mas agora, finalmente, estava disposto a relatar o que de fato aconteceu. Mas seria possível confiar dessa vez?
O desconforto toma conta, parece que estamos juntos no dia chuvoso, lamacento e frio naquele portal de Rashomon, amargos com a desconfiança e armados pela descrença.
Talvez a única resposta que temos aqui seja a constatação de que não há neutralidade em pontos de vista: o confronto dos relatos evidencia como cada personagem pensa e age no contexto em que vivem. Em quem confiar? Na história mais crível? Ou na personagem que mais te agrada?
Nos resta apenas o papel de julgar, vendo de fora o relato de cada um, fugindo do desconforto através da passividade e do distanciamento – assim como os juízes do tribunal que não possuem voz nem rosto no filme.
Rashomon é um lembrete da nossa ação ativa perante o mundo em que vivemos, nosso “ser-no-mundo”, repleta de subjetividades e diretamente conectada ao contexto de nossas vidas. A crise existencial ou espiritual presente na trama é o problema da modernidade que presenciou as bases até então firmes da nossa existência serem varridas, abrindo a ferida que escorre sangue, caos e vazio.
Mas até mesmo uma chuva torrencial passa e, com um toque de Dante Alighieri, Rashomon termina com um céu claro e o sol brilhando.
O desafio existencial pode ser superado, assim como a desorientação, a falta de esperança e a chuva de mentiras e desonestidade.