Por Vitor Lopes
Crédito: Cena do filme O Bandido da Luz Vermelha (1968).
Eu sou contra o cinema novo porque eu acho que depois dele ter apresentado as melhores ambições e o que tinha de melhor, de 62 a 65, atualmente ele é um movimento de elite, um movimento paternalizador, conservador, de direita. […] O cinema novo está fazendo exatamente aquilo que em 62 negava. O cinema novo passou pro outro lado. Como eu estou surgindo há pouco tempo, há exatamente dois anos, eu acho que tenho que romper também com esse condicionamento e partir pra uma outra jogada sem saber exatamente o que seja esta outra jogada mas, de qualquer maneira, fazendo o que eu acho. Então eu sou um cara em liberdade o que é um motivo de espanto pra maioria dos meus colegas de cinema, mas de qualquer maneira eu sou uma das poucas pessoas que estou continuando a me manter livre, o que eu acho extremamente difícil no Brasil de hoje. (Sganzerla, 1970).
Um país sem miséria é um país sem folclore, e um país sem folclore, é um país sem turistas.
O marginal Rogério Sganzerla, fã de carteirinha de José Mojica e crítico assíduo do Cinema Novo – talvez mais preocupado em criticar a mensagem pouco efetiva desse tipo de cinema no contexto da época –, tinha um objetivo muito claro: desvelar a identidade do Brasil.
Que identidade é essa? Não sei se Sganzerla conseguiu responder, mas em O Bandido da Luz Vermelha, existe uma pista. A primeira pista no primeiro longa metragem do diretor que buscou incessantemente entender o espírito do subdesenvolvido.
Para quem nunca assistiu as obras do diretor, alerto: O Bandido da Luz Vermelha é como correr para pegar um ônibus quando se está atrasado para um compromisso. Isto é, aquele sentimento de desordem, desespero e humilhação que é sentido na alma durante o restante do dia. O desamparo banhado em cacofonia da urbes.
Na linha narrativa se encontra o retrato do caos naturalizado, do que não está certo, de um projeto de país orquestrado por corruptos fardados, é a primazia da imoralidade, do antiético.
A personagem principal é o próprio bandido, a estrela do palco urbano. Leva o nome do filme, ganha lugar de destaque. Somos levados pelo voyeurismo de cenas angustiantes, dos crimes violentos e abusos constantes: é o bandido quem nos evidencia o corpo social da época, as contradições, os posicionamentos políticos, a identidade da época – ou pelo menos a tentativa de criar uma. É ele quem nos dá luz aos significados do Brasil de 1968.
Mas mesmo um depravado do Terceiro Mundo é capaz de se questionar: o bandido é consciente de suas ações, longe de ser colocado como um maníaco, um louco subversivo; aqui, a violência é escolhida de maneira lúcida, sem meandros, e o problema está aí – para o próprio marginal. Como é possível, mesmo fazendo tanto mal, não sofrer punições? Ele se pergunta. Quem ele é? Quem somos nós? Estamos dentro da cabeça de um criminoso.
Pensando com a minha própria cabeça, questiono: quais são nossos valores? Que tipo de sociedade brasileira estava sendo construída em plena Ditadura Militar?
O bandido me instiga.
Não sei dizer se ele também pensava sobre isso, para além de suas próprias preocupações. Mas sua vontade de pertencer é banhada por um presentismo que ressoa na ferida aberta do período: a Ditadura Empresarial-Militar, como um fantasma, sussurra um pedido maldito pela individualidade e cinismo.
É fácil se ver em O Bandido da Luz Vermelha: o retrato dos que estão à margem pouco mudou, e ainda vemos a continuidade daqueles que deveriam nos garantir o mínimo de dignidade nos mandar mastigar um chiclete mesmo com fome.
A continuidade da construção de um Brasil onde se fez da miséria um lugar de depósito dos indesejados e indesejadas – lá em 1970, iria ressoar a denúncia de que “o terrorista quer fazer do Brasil o anti-Brasil e do brasileiro o anti-brasileiro”.
Assim como perder o ônibus pode te fazer odiar ainda mais o capitalismo pela falta da qualidade e gratuidade do transporte coletivo e público, e pela condição de dependência de um trabalho mal pago, Sganzerla denúncia na montagem, na linguagem, no som, nas personagens, no tema, o caos perene da grande cidade, engolida pelo cinismo e individualidade.
Tudo é caos.
E, assim como em Acossado (1960), o som é peça fundamental da desordem. Aqui, a denúncia sonora se apresenta com a cacofonia das grandes cidades, da urbanização tecnicista típica dos planejamentos militares. É como se Sganzerla nos evidenciasse a sonoridade como aparelho de silenciamento: em meio aos sons de rádio, narrações em off, tiroteios, notícias de jornais televisivos, buzinas, falatórios, o grito das vítimas do bandido são abafadas. Da mesma forma, não há respiro para os próprios pensamentos.
O caos se torna outra melodia, normalizado pela correria do cotidiano.
Jamais transmitirei idéias limpas, discursos eloqüentes ou imagens plásticas diante do lixo — apenas revelarei, através do som livre e do ritmo fúnebre, nossa condição de colonizados mal comportados. Dentro do lixo, é preciso ser radical. Daí o amor pelo cinema brasileiro tal como ele é: mal feito, pretensioso e sem pretensões e ilusões estéticas. […] Continuo realizando um cinema subdesenvolvido por condição e vocação, bárbaro e nosso, anticulturalista, buscando aquilo que o povo brasileiro espera de nós desde o tempo da chanchada: fazer do cinema brasileiro o pior cinema do mundo! Ah, como isso seria maravilhoso e sensato (Sganzerla, 1970).
Não foram os marginais do cinema brasileiro que escolheram ser marginais. Mojica e Sganzerla – entre tantos outros e outras – foram colocados nesse lugar, na tentativa de inferiorizar suas obras, suas autorias.
Engana-se quem acha que deu certo.
A marginalidade de Sganzerla fez dos seus filmes um reflexo da relação subversiva com a realidade vivida e com a modernidade do cinema. Talvez seja por esse motivo que o Cinema Novo via com tanto desgosto os marginais: Sganzerla abrasileirou Godard, Orson Welles e Howard Hawks. Imagina o horror de gostar de filmes feitos no próprio país, credo!
Talvez Sganzerla foi abrasileirado até demais.
O bandido é a cara do contraste entre a ordem, o progresso, e a consequência da identidade cravada a ferro e fogo pelos militares sobre um Brasil com vergonha de ser Brasil.
Eu também acho que o cinema é inferior. Eu não chegaria a dizer que o cinema é uma arte, entende? Qualquer cineclubista diria: Não, Millôr, o cinema é uma arte. Eu, inclusive, gosto de cinema desse lado panfletário, esse lado quase vulgar, esse lado popular, visionário, o lado que eu vi muito no cinema americano. Eu também acho inferior e por isso faço filmes inferiores. Quando eu faço um filme eu tenho mil problemas de subdesenvolvimento da produção e tal, então, eu escolho o subdesenvolvimento não só como condição, mas, também, como escolha do filme. Então os filmes são subdesenvolvidos por natureza e vocação. Você falou em cinema inferior, eu faço cinema inferior, acho perfeito. Acho que obra-prima não existe, não (Sganzerla, 1970).
Com o bandido, se expõe o terceiro mundismo, a criatura chamada Brasil que depende do seu criador, o investidor externo que nada vê além de consumidores de uma promessa de progresso a todo custo, ao nosso custo.
O Cinema Marginal é o avesso do que se costuma pensar sobre cinema, ou do que ficou normalizado com os intrusos que nos enfiam goela abaixo uma ideia de cinema: não há espaço para o utilitarismo, a moralidade e a salva de palmas daqueles que criaram os muros que sustentam a ideia de marginais.