Por Cultura Plural
Quando se fala em documentário, principalmente aqui no Brasil, Eduardo Coutinho é incontornável.
O que faz Coutinho ser um mestre do método documental é a sua sensibilidade para escutar e olhar. Quem já teve a oportunidade de assistir qualquer obra do diretor sabe do que estou dizendo: Coutinho trabalha com o plano dos sentimentos, do afeto onde a memória se apoia ao relembrar, do olhar sensível para quem está diante da câmera.
Nas obras de Coutinho, as pessoas são tratadas como tal, e suas subjetividades transbordam por todos os cantos, respingando na forma como vivem, nos locais onde habitam, nos objetos em volta. É como se o olhar de sua câmera fosse capaz de desvelar o íntimo e o rotineiro de cada um. Mas diante desse cenário, não há pretensões de transformar a obra documental em registro do real per se; longe disso, Coutinho é conhecido por misturar ficção e realidade, fugindo da falsa dicotomia entre não-ficção (documentário) e ficção. Sua escuta atenta não é passiva; Coutinho sempre se mostra – na montagem, na construção, na narrativa, etc. – para comentar alguma coisa em seus filmes.
É palpável a liberdade que o cineasta encontra nos cenários em que filma, como se a mise en scène mostrasse o resultado das inúmeras perguntas que Coutinho traz consigo, criando ainda mais perguntas.
É nesse ponto que trago o documentário de Petra Costa: em Apocalipse nos Trópicos (2025) o anseio está em responder, como um relato incólume do real.
Assim como em Democracia em Vertigem (2019), a cineasta parece incapaz de questionar as imagens que escolhe em sua obra. O que se mostra apresenta-se como registro do real apenas por ser evidenciado pela câmera, nada mais.
Poucos são os momentos onde Petra comenta sua obra para além do que seu olhar (sua câmera) nos mostra. Penso imediatamente na cena onde Lula diz que não usa igrejas como palco político, e logo em seguida está no altar de uma igreja neopentecostal sendo benzido, pedindo votos. Gosto muito da provocação que Petra coloca ao associar a carta aberta de Lula aos neopentecostais na corrida eleitoral de 2024 com a carta aos bancos, de 2002. Aqui, existem perguntas que questionam posições, perguntas que levam a narrativa numa autenticidade pela escolha de palavras e decisões das próprias personagens do mundo real. É um único passo para trás, para melhor visualizar a situação, num mar de certezas estabelecidas.
Da mesma forma, quando Malafaia se apresenta dentro de casa, a imagética é bem perspicaz: o pastor que vive com as regalias de um nobre absolutista. O resultado estético é de uma figura performática e caricata, o que funciona muito bem com a narrativa do documentário. Existe um reconhecimento do poder de influência de Malafaia nesse núcleo crescente da extrema-direita neopentecostal que o leva ao protagonismo dos eventos explorados.
Só que há um grande problema ao tentar explorar um cenário do real quando sua única ferramenta é um lirismo passivo, quase infantil, da situação provocada: ao tentar explicar as origens das pautas neopentecostais na política brasileira contemporânea, Apocalipse nos Trópicos recorre ao bicho-papão, um mal absoluto. Recai o cacoete perigoso das grandes personagens: Malafaia é tão poderoso a ponto de orquestrar, sozinho, uma grande massa revoltada com a dita “esquerdalha”, ou neste caso, com Lula. Uma situação coletiva torna-se um joguete de egos entre bem e mal – é como ler uma obra positivista do século passado, onde toda dinâmica social era analisada através de grandes homens.
Mesmo quando multidões aparecem – o que, aliás, é um discurso imagético bastante repetido no documentário –, vejo apenas uma massa sem rosto, sem nome. Ou seja, o filme é consciente da condição coletiva do que mostra, mas a força do subjetivo que move essas pessoas a irem em protestos pedindo intervenção militar, que vão em motociatas com Bolsonaro, se perde quando a imagem tenta dizer tudo por conta própria. Os planos abertos e fechados das multidões se colocam não para questionar, mas para responder.
Como responder se nenhuma pergunta foi realmente feita?
O quê exatamente o filme quer responder? A importância política e ideológica de Malafaia? O sequestro de pautas sociais e políticas das igrejas neopentecostais? A presença cada vez maior de evangélicos em locais periféricos? A ausência do Estado e a ascensão do discurso cristão?
Não sei dizer, pois tudo o que ouvi foram tentativas de frases impactantes e uma analogia ao texto bíblico de Apocalipse que estraga a própria crítica – caindo na armadilha do dualismo –, mas nenhuma pergunta efetiva.
Volto a lembrar de Coutinho.
E antes que entendam a comparação com Coutinho como sendo uma regra a ser seguida, ou um manual de como fazer documentário, esclareço que o intuito é simples: de um lado, filmes bons, do outro, um ruim.
Em Peões (2004), logo no início do primeiro governo Lula, Coutinho resolveu explorar a figura mitológica de Lula que se criou, principalmente, na corrida eleitoral vencedora contra José Serra. Como? Ora, ouvindo pessoas que, de alguma forma, participaram da vida política e pessoal do então presidente, da Greve do ABC à disputa contra Serra.
Isto é, Coutinho faz a história a contrapelo: a figura de Lula se constrói através dos seus apoiadores e apoiadoras, não pelo próprio personagem.
A sensibilidade está no complemento entre imagem, estética e a subjetividade de cada um e os vários porquês de seguir o líder político mais importante da nossa história.
Meu grande problema com Apocalipse nos Trópicos está na quase negação dessa coletividade fundamental para o que está posto no nosso contexto atual.
É quase um filme de fantasia tolkieniano, uma disputa entre bem e mal.
Ainda que eu não deixe de considerar o Malafaia um ser desprezível, tratá-lo como um mal absoluto e, consequentemente, trazer Lula como contraponto disso – um herói romântico –, é prejudicial para a análise; é preguiçoso e perigoso.
A esquerda liberal é péssima em conjunturas, e quando se erra na análise se erra na prática.
Nota para o filme
Sobre o colunista
Vitor Lopes é professor e historiador formado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História (UEPG), além de residente técnico e cultural do Museu Campos Gerais. Divide o tempo livre entre torcer para o Vasco e defender o lúdico e o terror no cinema.