Por Vitor Bomfim Lopes – historiador, professor e vascaíno.
Existe um problema que paira na Arte que não é de hoje: a procura por um realismo. É como se a realidade fosse sagrada e, consequentemente, o pacto ficcional de obras cinematográficas deveria seguir a lógica do real, do verossímil.
Há uma busca por estender o véu do plausível até as lentes da câmera, como se a proposta final do cinema fosse demonstrar o real, sem intervenções, sem cortes. Dois mitos colidem: a neutralidade e o cinema como legítimo representante da realidade.
Ao que parece, o maior pecado da sétima arte seria a de lembrar-nos que um filme é apenas um filme. Escondem-se as câmeras, os enquadramentos, as escolhas; pois no cinema real tudo o que vemos são os olhos da Entidade Cinematográfica. Acompanhamos como voyeurs a documentação de um pequeno pedaço do real.
O problema está nesta noção: o verossímil como única virtude da obra. O não cumprimento das regras (ou dogmas) da nossa sagrada realidade seria o erro (ou pecado) capital da história que está sendo contada e mostrada diante de nós. O julgamento usa a formalidade como régua; não há espaço para o fantasioso, o utópico, o exagero; a única possibilidade existente é a estética do realismo.
O documentário — ou os elementos que dão autoridade a ele — torna-se o acólito do registro sacro do real nas artes visuais. Tudo não passa de um mau entendimento e de uma falsa dicotomia: os filmes documentais nascem e logo são estigmatizados como rivais da ficção. Ora, não existe nada mais real do que documentar o real, certo?
Talvez essa afirmação fizesse sentido se cada um de nós não interpretasse o real e/ou a materialidade de nossas vidas conforme nosso pertencimento de classe e raça — para dizer o mínimo.
O que é esse tal realismo? Posso dar exemplos do que considero como elementos realistas aqui neste texto, mas para quem estiver lendo do outro lado da tela, essa realidade evidenciada por mim pode parecer distante ou até mesmo fictícia.
Talvez seja o momento de trazer um teórico ao texto.
Não há um realismo, mas vários realismos. Cada período procura o seu, a técnica e a estética que capturará, reterá e melhor traduzirá o que se quer da realidade. (André Bazin)
Isso significa dizer que a noção de um realismo puro assim como as regras a serem seguidas para se evidenciar o real através do cinema é algo ilusório. Mesmo para Bazin, para quem o realismo é um objetivo, uma função essencial no fazer cinematográfico, a realidade é também uma interpretação. No realismo impregnado no cinema contemporâneo, o próprio Bazin seria tratado como um pecador – o crítico francês passaria por um anti-baziniano.
Onde já se viu considerar o imaginário fusão fundamental do realismo e grande geradora da potência do cinema? Herege!
Evidenciando o óbvio: para se fazer realismo no cinema é preciso tratar estética e criativamente a realidade, sem perder de vista que o real está sendo construído por alguém (ou vários alguém) que está inserido num presente específico e histórico-social distinto (sem ignorar persistências e rupturas), com vontades subjetivas e políticas próprias.
O problema é a padronização.
Quando se vende a ideia de um filme genial, estima-se sua lógica, sua verossimilhança, seu cuidado em fugir de caricaturas ficcionais. Existe uma certa preguiça na dinâmica entre obra e espectador nesse tipo de interpretação da Arte: os elementos de realismo na narrativa fílmica dão a garantia de que a obra é verdadeiramente boa. É a acomodação no real, ao que já é conhecido.
Um exemplo disso? Aquela baboseira que acabou ganhando o nome de “pós-horror” e toda a glamourização em cima da milionária produtora A24.
Percebam como a idealização de uma produtora e distribuidora de filmes só foi possível ao passo que sua propaganda se deu através de “filmes inteligentes”. Buscaram no terror — um gênero bastante marginalizado propositalmente pela indústria estadunidense devido ao estigma, entre outras coisas, do fantasioso — uma fórmula de se vender o realismo necessário para transformar o terror em algo genuinamente bom.
Aos impacientes e fãs de distribuidora de cinema, abro um parágrafo só para prestar contas de que não tenho má vontade com a A24; deixo registrado alguns filmes que possuem o selo da A24 e que me agradaram muito: A Bruxa (2015), Jóias Brutas (2019), The Florida Project (2017), Sombras da Vida (2017), Love Lies Bleeding (2024), Under the Silver Lake (2018), Aftersun (2023), Vidas Passadas (2023), Iron Claw (2023), O Farol (2019).
Enfim, o incômodo está na fetichização do real como sinônimo de qualidade inquestionável e única na obra fílmica. Rejeita-se o terror para fazer “pós-terror” — não consigo lidar de forma amistosa com este termo; para mim, é um dos piores conceitos já criados na crítica cinematográfica. E tudo não passa de uma aparência, de uma performance.
Busca-se a rejeição de elementos pesados e mais caricatos para performar uma profundidade que, nesse caso, deveria existir apenas pela ausência do jumpscare, por exemplo. É como se o “pós-terror” estivesse dizendo para Dario Argento, Mario Bava, José Mojica Marins, Robert Wiene, que o que eles fizeram em suas obras foi algo menor, menos cinema, mais conto de fadas – no sentido mais pejorativo que esta palavra pode carregar.
A rejeição do cinema como palco de máscaras e farsas; o que deve imperar é o cinema contido, o cinema controlado, sóbrio. A sobriedade da estética e da narrativa impregna não apenas o terror, mas outro gênero que bebe da fonte dos elementos fantásticos e ficcionais, mas que hoje está desidratado: os tão amados filmes de heróis. Quando digo isso, estou longe de apontar o dedo apenas para a Marvel. A fonte dos elementos fantásticos está seca desde Christopher Nolan e seu Batman-Pé-No-Chão.
Novamente, a virtude per si é tão somente a performance de um realismo que controla a narrativa de forma a fazê-la modelo de excelência por se parecer com o nosso real. A trilogia Batman é considerada boa porque ela performa um realismo perfeito, porque não há espaço para exageros, não existe nada de fantasioso; é possível olhar para os filmes do Nolan sobre um bilionário que se veste de morcego pelas ruas de uma cidade fictícia e dizer “nossa, isso poderia muito acontecer mesmo!”
Gotham City morre para transformar-se em um espelho de Chicago; as cores morrem para dar espaço a padronização escura e cinza pastéis; o misticismo morre e em seu lugar se estabelece a tecnologia; a imagem morre e só existe verborragia. Dizem que o Batman não mata, mas o Batman-Pé-No-Chão mata qualquer elemento que fuja da regra estabelecida por Nolan de subverter a personagem fictícia em algo crível. Antes que me considerem um fã de quadrinhos desses que abominam adaptações e entendem os gibis como sagrados – o que seria uma baita ofensa, – o que exponho como problemática é o que já comentei acima, mas reforço: não me interessa de que forma o Batman e sua Gotham City se apresentem, se a visão de um diretor ou diretora é fazer o mais realista possível, ótimo; a questão está na performance do real como o único elemento de força da obra.
Se ainda não ficou claro a primazia do realismo, evidencio, então, a nova mania construída pelo mercado hollywoodiano: os remakes live-action de animações.
Começou em O Rei Leão e agora já estamos em Lilo & Stitch.
Se a fonte da fantasia e do lúdico secou para os filmes de super-heróis, aqui esta fonte já foi destruída e dos seus escombros ergueu-se uma Igreja para cultuar o realismo.
Parece não haver mais possibilidade de profundidade sem que haja a rejeição de uma fantasia, de uma utopia. Parece-me que o cinema deixou de ser um escapismo do presente para tornar-se uma extensão explícita e explicativa da alienação do presente.
O artificial tornou-se uma palavra suja, ninguém quer ser enganado. Ninguém quer saber que está assistindo a um filme. O cinema precisa ser (ou parecer) verdade.
Claro que esse público vive num espaço existente: falo do consumo da sétima arte nessa lógica do verossímil impregnado na cultura ocidental contemporânea. O cientificismo que estamos tão acostumados a idolatrar, o juízo de valores que faz parte da nossa visão de mundo espalha-se nos dias de hoje para a Arte.
Uma obra cinematográfica passa pelo olhar treinado de um detector de mentiras: julga-se as qualidades reais da narrativa sem considerar o mundo ficcional proposto pelo diretor ou diretora. A estética rendeu-se ao imediatismo do que parece ser real.
É, digamos, um problema de espírito.