Por Joyce Clara
“Ser bonita é meu pecado”. A fala é de Doroteia, uma viúva e ex-prostituta que, após perder um filho, busca consolo na casa de suas tias e primas conservadoras. As mulheres vivem um culto à feiura e desprezam qualquer sinal de sensualidade e desejos. A protagonista faz parte da peça com o mesmo nome, texto original de Nelson Rodrigues, que foi apresentado pelo Grupo Fócu de Teatro no último domingo (10).
Doroteia não é aceita na família por conta do seu passado e sua beleza. A mulher deve se afastar de todos os instintos humanos e abraçar as imposições sociais, representadas pelas tias e primas. Como forma de se opor aos desejos (sobretudo sexuais), nenhum homem entra na casa há 20 anos e elas devem pedir chagas para se tornarem feias (nesse caso, características que as deixassem longe do padrão de sensualidade no olhar masculino) e viver em eterna insônia, uma vez que sonhos não são controláveis e podem ser uma armadilha sexual.
Além disso, outra parte da história mostra Maria das Dores, a filha natimorta de cinco meses de Dona Flávia, que irá casar com um noivo invisível. Trata-se de um noivo invisível por uma maldição: a bisavó da família casou com um homem que não amava e, por conta disso, adquiriu uma náusea nupcial, que desintegrava fisicamente o marido e a impedia de ver homens. A condição passou para todas as gerações e se tornou uma bênção na visão das mulheres da família, uma vez que sem ver um homem o desejo não poderia ser despertado e elas só teriam contato com o sexo masculino uma vez na vida, o que permitiria a reprodução.
O texto retrata uma sociedade que condena a sexualidade. Apesar de ser um texto de 1949, em que Nelson utiliza da narrativa para criticar o conservadorismo hipócrita da classe média brasileira, ela ainda é atual.
Marcos Poellnitz, um dos fundadores do Grupo Fócu, conta que Doroteia é o primeiro trabalho realizado pelo grupo, que existe desde 2020. “É a partir dele que decidimos que seríamos um grupo profissional e que faríamos um teatro de grupo”, revela. Ele brinca que foi o texto que escolheu o grupo, pois na época eles não pensaram sobre os porquês sociais ou culturais da obra: “não foi por esse caminho que aconteceu, apesar de hoje reconhecer que ele é também uma potência do trabalho”, explica.
Sobre a escolha de Nelson Rodrigues, Marcos observa: “o nosso Doroteia é muito pouco adaptado no sentido de mudança de texto exatamente por conta da dificuldade que é lidar com a dramaturgia rodrigueana, de Nelson Rodrigues”. Para ele, seria imprudente mexer em obras tão completas e densas. “Em nossa montagem prezamos e tentamos ao máximo manter o que o autor criou, tentando representar o texto no palco – claro que ainda assim dançando dentro da nossa linguagem e pesquisa”, relata.
Marcos expressa o que o teatro representa em sua vida: “eu tenho fé de que o teatro ainda pode salvar o mundo, o teatro salvou o meu mundo, sei que ainda pode e vai salvar o mundo de muita gente”. Além disso, expõe que o grupo foi bem recebido no festival. “Assistimos grandes trabalhos de outros grupos, a curadoria fez um excelente trabalho, com certeza foi um marco que nos lembraremos com muito carinho e felicidade”.